_sobre este livro
Espelho. Nós entre atravessamentos. No fundo do escuro.
Em suas mãos, o primeiro livro editado de Maíra Fernandes de Melo, poeta duplamente taurina, pensadora de forte sensibilidade das profundezas da arte (e) da vida. Mas não pense que há peso (apenas), por ser tão funda. Abra-se ao delírio, ao impulso e voo, às marés noturnas insones, às gatas no cio, às relhas e também à força das placas tectônicas.
Maíra escolhe não temer diante do abismo. E nos convida ao salto. Para dentro… de si, nos levando ao confronto de nós mesmxs. Sombra e luz – e às vezes essa ausência. A cada poema, retratos e retalhos cotidianos de gente que […] sabe/que a noite pode ser um sol horrendo, de quem sobrevive às noites geladas de inferno. Dentro desse mergulho de quem desce para o play, há as vidas de gente z e gente y, há também acenos a Piva, Tieta, Agualusa, z e Zumbi, Florbela, Ginsberg e Camões, junto a -inas, -atos e -pam.
Se sentimos dentre as páginas um/silêncio/sem/descanso, em outro momento o verso grita: por isso faço barulho! Há algo de humor na melancolia que constrói, um malabarismo entre idiomas hermanos, entre poemas tantos, e entre uma vida tão tecnológica e virtual – de e-mails que não chegam, procrastinação, google, motorhome, instagram e o poema a escrever: […] na cadeira a bunda/[…] no papel o poema. Num sábado qualquer, a eu-lírica acorda esquisita, mas em português. A gente sorri de canto de boca, devora mais uma página, […] entre ladainha e lágrima, e ela define: dançar, que é pensar com a bunda, e avisa: nada em mim é rima.
Caminhamos entre lembranças e assombramentos diante da […] gravidade que como você/também não estava; museus e parapeitos, trabalhos, fugas, talentos, êxtase, pulo. As casas e corpos que ela habita com seus estados mistos. Tudo o que em mim desmorona em você só constrói. Aqui longe, aí perto. Só há arco-íris/mantida a distância. Suspiramos duas vezes.
Pesquisadora do indomável da escrita feminina, Maíra nos apresenta em seu livro o amarelo inviável da tarde de outono, e o sol de julho que já não arde nos ossos. Estados mistos começa com o poema “fracasso” e termina em “sou”. Trajetória que anuncia a potência do percurso. Ao fim, diferente das jardineiras, sentimos sua falta. Um portal se abriu. Ventou. E ela bem que havia dito: “a quem perguntar,/avisa que hoje eu vou me perder”. Voou.
Aline Miranda