_sobre este livro
É preciso carregar pássaros na língua
A poesia de Tiago Fabris Rendelli poderia ser como uma fotografia. Um jogo de marcar o papel e os sais pela luz, criando contornos claros pelo que se queima — a escuridão. Mas pensando em manejar a Terra Seca, prefiro dizer que é como uma xilogravura. Escavada com esforço na madeira. Recebendo a tinta na superfície para revelar os vincos. Este livro dá-se a ver pelo claro-escuro dos vãos de sua superfície. Se a luz marca o papel fotográfico como um passe de mágica, aqui cada contorno do desenho é escrito pelo corte do ferro sobre a madeira, com o cansaço das mãos e o desgaste da ferramenta.
O livro traça um percurso pelas sombras em que as imagens aparecem em relevos e texturas criados através da destruição. As imagens de escombros constroem uma caminhada árdua por montanhas erguidas ao contrário ou mortos sepultados no céu (como os de Paul Celan). A luz aparece apenas para ressaltar a escuridão.
Assim como na madeira entalhada, frequentemente escapam farpas do texto e a matéria resulta áspera. Não se vai percorrê-la com pontas de dedos, mas com a mão espalmada e pronta, sensível a perceber uma poesia que carrega textura em suas imagens: o tempo das rachaduras, a pele confundida com folhas de árvores, os plásticos derretidos, margaridas regadas de lesmas, “coisa amarga, lugar errado”.
A partir da prensa, o contato com a matriz compartilha a tinta preta. Então se constata que a potência do encontro está no que há de obscuro deste livro. Que é a coragem exigida pela tinta que faz o poema falar. É depois da coragem que está a liberdade que Terra Seca parece buscar. Mas o contato aqui não se dá sem estranheza ou dificuldade — aproximam-se desespero e riso, dor do parto e orgasmo, assassino e a vítima. Mas há espaço também para a simples comunhão — no plural: “vestir os pés de caminho” e convidar: “colemos outra vez as estações / e todo sul será o mesmo”.
Ainda assim, os contornos são dados do não-contato, da ranhura que não forneceu tinta ao papel. O desencontro constatado pela mão que apalpa a madeira farpada — “todos os encontros prenunciam a ausência e a ciência de que nas estrelas só encontramos / nossos próprios olhos cegos”. Poesia imperativa, em voz alta, que convida, convoca, com ou sem esperança de resposta, não importa. É assim que alcança seu ritmo. Contundente a cada verso — como o mundo que compõe — imperativo no sim e no não, na ação e na resistência (não movimento com convicção). Um texto que da mesma forma se escreve também em pausas contundentes, no equilíbrio (ou desequilíbrio preciso) entre o choque eloquente do corpo no mar e a “onda que se quebra apenas na altura dos joelhos”.
Ao final do percurso, entre positivo e negativo, contato e ranhura, a gravura se mostra em “observações desimportantes”: “há monstros que habitam / os pés sem caminho. / Por isso / é preciso carregar pássaros na língua”.
Terra Seca propõe uma língua feita de se moldar a rigidez. A rigidez da madeira escavada, do corte, da marreta contra o aço. Uma língua que fala de abismos, difícil, verdade, mas hábil na busca da noite. E que lida com a palavra como com o mundo que cria — fundado em destroços que ainda guardam potência de vida. Se o silêncio é rachadura, a palavra é raiz, uma semente, explosão guardada, “até que a voz germina”.
Eliza Caetano