_sobre este livro
Jean Luc–Nancy diz, no seu 58 indícios sobre o corpo, entre outras coisas, que “o corpo é material. É denso”; que “até o vazio é uma espécie muito sutil de corpo” e ainda que “o corpo é uma prisão ou um deus. Não tem metade”. Recorro a essas imagens talhadas pelo filósofo francês para falar da poesia de Eliza Caetano, uma poesia que se ancora no corpo, nos vestígios materiais que este deixa à sua passagem, nos afetos e afecções, desassossegos que traz consigo ou transmite como herança. É nesse sentido que a poética de Eliza, neste livro de estreia, parece se direcionar; na construção, ou antes, no desvelamento de um corpo denso e luminoso, que convida a compor o vazio com os fragmentos que deixa à mesa como peças de um quebra–cabeças, uma divindade em seus humores, desejos, ausências e incompletudes.
A anca, os ombros pesados, os pés perfurados delineiam um corpo feminino dolorido, mas ainda assim insubmisso. Num dos mais potentes poemas do livro “O atirador de facas”, somos convidados a perceber na moça retalhada em postas, a moça–peixe a flertar perigosamente com o rio, a posição desafiadora perante o assassino, seja ele o (anti) herói, seja ele o amante. Intimidade e inviabilidade se entrelaçam. O sujeito se estilhaça continuamente contra o outro e a isso, a essa ação, se chama amor ou pegando a ponta de um verso de Manuel Bandeira, em Arte de amar, “os corpos se entendem, as almas não”.
Há uma delicadeza perturbadora no trajeto de leitura deste livro, uma sensação de estar lendo um roteiro pelas anotações e rasuras, pelo caminho do fluxo sanguíneo; a sensação de vestir, enquanto se lê, a roupa de um personagem à deriva. Em resumo, uma poesia poderosa que nos faz enxergar, por um momento, com os olhos de Eurídice.
Micheliny Verunschk