A poesia é o lugar das insistentes. Não há outro lugar que se faça lar daquelas cuja única saída é escrever; pulsar o verbo feito fluxo sanguíneo, as oscilações do tempo, espaço, hormônios, projetos que vetam nosso direito à insistência. E tanto sabemos desta que aqui estamos, há uma eternidade arrastando o mundo com nossos dentes afiados e ventres murchos de cadelas abandonadas que têm de implorar por comida revirada do lixo.
Nada nos é concedido – nunca foi. Tudo há de ser retomado e reconstruído.
A Cadela de Layla de Guadalupe dissipa as definições do dicionário (“1. A fêmea do cão; 2. Mulher vulgar, de má índole, sem compostura; 3. Prostituta”), essa instituição linguística para quem o feminino é apenas mera variação do masculino. Aqui, não: Cadela é sujeita, verbo e objeto de si mesma, se olha no espelho medindo de cabo a rabo o tamanho de sua insistência. Merece seu próprio verbete, rasga o antigo e o reescreve. Não há mãezinhas nem putas, devotas nem arrependidas – apenas mulheres cometendo o crime hediondo de existirem.
Há uma tradição quase mítica do poder da saliva canina para curar feridas humanas. Rica em moléculas antimicrobianas, dizem. Proteínas antifúngicas, algo assim. Lambem, lambem, lambem, as suas e as nossas. Feridas pequenas, grandes, profundos buracos existenciais. Lambem, mas sabem a hora de parar, como se o corpo dissesse que sim, basta, agora é a minha vez, daqui para frente eu resolvo. Um corpo-palavra insistente que só uma fêmea – cadela, mulher – é capaz de ler. Este livro, pois, tem a mesma remetente e destinatária. Cadelas, madalenas, juritis, solitárias, costelas, grávidas, atrofiadas, submersas. Mulheres de mãos em carne viva segurando a vida em uma, soltando os rebentos da outra. Mulheres nascidas com o fluxo-floema correndo no sangue, na saliva mágica, gotejando pelos seios. Mulheres insistentes na escrita, essa placenta quente e acolhedora que nos faz lembrar que sim, há um lugar no mundo, um lugar que chamávamos de nosso antes mesmo de nascermos – e agora nos empurra à tarefa vital: escrever para ferir a eternidade com os uivos que nos chamam de volta à nossa casa, à nossa Cadela: substantivo próprio, autônomo, insubmisso.
Letícia Bergamini Souto – tradutora, pesquisadora e musicista.