Aponto meu lápis com faca

Disponibilidade: Brasil

Sou uma escritora que vive em Morada Velha, cidade diminuta, solitária, cheia de esquinas conflitantes, que me ignora. Vivo cercada de gente estranha que não sabe o valor que as histórias inventadas têm. Não fosse essa vida paralela que vivo há muitos anos já teria enlouquecido nesta cidade com ares de abandono fincada ao pé da serra. Não vivo aqui a maior parte do tempo, escapo pelas entrelinhas das páginas amareladas de papel de pão que guardo para assentar minha voz. Aponto meu lápis com faca, quero conservá-lo sempre afiado para laçar as palavras que saltam das vozes que escuto atrás das portas e na praça principal quando caminho em círculos à procura do nada.

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_sobre este livro

Muitas coisas me diz uma nódoa; tantas e tão peculiares que posso, liberto da marcação do relógio, confabular com meus pensamentos intranquilos a respeito dela, por um tempo alongado. O que vi em minhas andanças no encalço daquelas pessoas, capturadas pela escritora habitante de Morada Velha, foram nódoas indeléveis. Cada uma dessas criaturas — predominantemente mulheres — têm corpo e alma marcados como se fossem, estes, meros tecidos, estampas à mercê de um desenho intruso, que se intromete na cor do pano, infecta sua feitura, infiltra-se em seus fios e passa inexoravelmente a fazer parte da estrutura daquela veste. Mimetiza-se, incorpora a nódoa. A compulsão pela roupa quarada, esfregada, lavada; o afã de enterrar a cabeça pescoço adentro, sepultando-a sob o peso de incontáveis latas d’água; ter de aguar flores e frutos; obrigar-se na umidificação da vida que persevera seca (tudo) agrupa-as num estigma. Ceifadas por tão cruel gestual, entontecidas por turvos pensamentos, velarão o próprio corpo murcho, desfiarão todas as contas do rosário na intenção de um espírito exangue e, ocupadas, nem se dão conta de que o castigo foi aceito por elas; cumprem-no como se Sísifos fossem, empurram sua pedra penitencial montanha acima, apenas para vê-la rolar montanha abaixo, condenadas que foram à execução de um trabalho extenuante e improfícuo. Mas Sísifo cresce, volta a ser Sísifo, a ter sede de si mesmo, dentro dos acanhados minutos em que desce para tornar a subir, Sísifo, senhor desse tempo ínfimo, pensa; diz-nos Camus. Essas mulheres daqui negam-se ao próprio pensar, desperdiçam esses pingos de tempo, em favor da pedra, pela pedra. Dão-se à secura indizível e constroem uma solidão inimiga. Derrotar lonjuras, no entanto, ainda é preciso, aqui e acolá, vencendo-as, abrindo caminhos propícios aos grãos desabitados de gorgulhos, por certo seu homem e sua prole apreciarão. Chegará o tempo imponderável, aquele, do respeito, da devoção à perenidade da nódoa; será providencial que ela, a nódoa, persista, desta forma, à medida que for cautelosamente esfregada, poderá dizer-lhes onde, de que fato, em que esconderijo nasceu. É bom tocar a pedra ladeira acima, ainda mais ocupar-se no rolar da pedra ladeira abaixo; garantir a excelência do cumprimento do castigo. Daí, mesmo quando acontecer de partirem, não partirão deveras, essas nossas mulheres. Lá fora, carregarão Morada Velha às costas.

 

Rejane Gonçalves

_outras informações

isbn: 978-65-5900-859-9
idioma: português
encadernação: brochura
formato: 13x19 cm
páginas: 112 páginas
papel polén 90g
ano de edição: 2024
edição: 1ª

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