Em Misantrópolis, de Isadora Machado, as epígrafes não propriamente homenageiam. Elas mapeiam ariadnemente o périplo dos passos desnorteados de uma mulher nos logradouros do afeto ora luminoso e sombrio, ora abstrato e nevrálgico, ora desesperado e vibrante. Afeto que, entre a concessão e a resistência, contorna o desejo de estar no mundo para além de um acaso, de um engano: entorna o desejo de fazer-se poema.
Por esse ângulo, nas águas profundas de Olokun, nas águas densas do desejo hilstiano, nas águas turvas da palavra glissantiana, nelas meteu seu talento a poeta. Revolver-se nelas, sabe-se, não é um risco simples, anódino… É necessária a audácia, mas tentando preservar-se do sorvedouro que é lidar com o desconhecido e indômito daquelas águas de si, do poema, do outro. Disso tratam, de modo rascantemente lírico (não esperem canto de uirapurus, mas de urutaus), os textos poemas em prosa que desanda em versos como marolas, arrepios e polissemia de Misantrópolis.
Uma voz, Marina, mariposa, atravessa as interrogações melancólicas, ásperas, que uma lesão amorosa enseja. Pirata – perfeita onomástica para o que nos tira do sossego das águas fáceis – é o nome do desejo que habita ainda aquela voz que, uterina e andante, se procura, ao deixar de procurá-lo, espalhando-se pelas ruas, cidades e línguas crioulas porque entranhas da única linguagem que à mulher de água interessa: a da poesia, sua habitação e habilitação terminais: “Meu útero vazio coagula sua ausência. De Palavra, verbo teso, tu preencheste esse corpo assintático com teu patoá. Mas a homilia mundana esvazia o ventre desta que é Mariposa, e tão tarde Mulher, mas em riste Poeta”.
Essa voz central emprenhada de patoá perpassa dois “Atos” e um pós-ato (“K.O.N.K.O.M.U.N.Z.”), de que se compõe o livro, e envereda por movimentos musicais, ritmos arquitetônicos, cadências rituais de que são feitos os textos. O que brota dessas passagens é um mergulho radical na feminidade, na humanidade e sobretudo na poeticidade. Aqui, as imagens (surrealistas), as sonoridades (aliterantes), os intertextos (luso-franco-hispano-caribenhos) e a sintaxe (criativa) da autora desencadeiam uma dança verbal que embaralha o fôlego do pensamento, insuflando maliciosamente neles uma outra dimensão: a da palavra que, em vez de totalizar um sentido, desdobra-se capciosa em vários. E o que deseja a literatura senão espalhar na leitura esse caleidoscópio volátil de águas significantes?
Paulo Roberto Sodré