Taxidermia, antes de designar o processo de empalhamento de animais mortos, tem origem etimológica no ato de dar forma à pele. Mas não seria a forma o que se dá na passagem, e a pele a forma mesma do corpo enquanto passo, ritmo, conversão? O que não passa, então, com a morte, que justifica a conservação?
“quem perde o medo de morrer não perde/nada”, escreve Alice. Permanece contíguo ao risco, “na língua do excesso”. A agudeza verbal de seus poemas não tem piedade; não é apenas um código entre vários, um maneirismo qualquer. Não se trata de confrontar a negatividade com o artifício, ou de com a morte estabelecer um pacto, como tentou Orfeu, herói das passagens. Este sabe, “porque nascido além/não há nada”. Eurídice, inclusive, está de greve, indisposta. Nem por isso a poeta se imobiliza, como Hamlet capturado pelo desejo sussurrado pelo fantasma. Alice atravessa o “espelho cantante” (dos nomes), a resistência da semelhança (das línguas), desafiando o que há de intraduzível numa imagem refletida. Como máscara que não sai do rosto, o corpo é impossível realmente. “Não procuro um corpo que seja possível”, escreve a poeta, “eu procuro uma mulher/para chamar de apostasia.”
Esses poemas, mais do que subscreverem os pactos, os laços e as filiações de quem se acha aos pares, disseca-os desde a linguagem dos afetos, que é impasse e desamparo por natureza. A origem é afecção e afetação, ciência das pendências e das renúncias; por isso a voz dirige-se ao pai, ao partido, à tradição, ao fascismo da língua que nos obriga a dizer. Há, no entanto, um outro que nunca é dito, este sim, causa dos abismos do desejo não filiado. Uma cena mais além do hereditário, que não pode ser transliterada.
O poema é um animal trocado, imobilizado entre o fascínio e o assombro. A leitura movimenta-o no imaginário, como o que indaga o corpo. Agrupa-o no simbólico, como o que desafia o laço. “espero nunca-nunca/perder a voz”, nos diz um de seus poemas, enquanto a voz parece ser o humano em espera, a “fissura familiar” por onde imaginamos, nas bordas ou na poeira do Sol, um habitat. “Na linguagem o jogo é sempre venal”, escreve Alice, brincando sobre o duplo sentido: o que é das veias é corrediço, fluente, troca constante — herdando o que não foi dado, doamos o que não temos. Não abandonamos as casas vendidas, as galáxias que não estão à mão. Não basta tudo perder, o corpo em perdição: é preciso questionar tanto a propriedade quanto a contingência, como aprendemos com o que vem a ser o comum, mais uma vez, na poesia de Alice: “ouro epidérmico de escombros”.
Carolina Anglada