Pirilampos será, espero, um livro muito lido. Sandra Castiço é uma contista extraordinária que, criando um universo absolutamente próprio, recorda-me Katherine Mansfield, Edgar Allan Poe, Anton Tchekhov, Lucia Berlin. Dificilmente se diria que é uma primeira obra, tamanha é a maturidade narrativa. Afirmo-o despudoradamente, com a segurança de quem tem acompanhado desde há algum tempo a sua escrita e, em cada momento onde tal acontece, observado com espanto o fulgor de cada uma das suas criações literárias. Fulgor peculiar, acompanhado de um certo estranhamento, até desconforto, que ainda assim convoca à adição — não conseguir parar de ler até atingir a última página. Aquilo que, parece-me, é caraterística de todo o grande conto. O conto, esse género de tão difícil definição, tão esquivo nos seus múltiplos e antagónicos aspectos, e, em última análise, tão secreto e voltado para si mesmo, caracol da linguagem, irmão misterioso da poesia em outra dimensão do tempo literário, como descreve tão bem Julio Cortázar em Valise de Cronópio. Sandra Castiço fá-lo com uma mestria e naturalidade que sidera. Esta palavra, “naturalidade”, serve-me para caracterizar um pouco do universo que referi acima. Debruçando-se sobre o banal, sobre a vida diária, a autora impele-nos a mergulhar no detalhe, no neurótico, até no sórdido, sem nunca perder o que, entre o mais difícil do humano na sua relação com o outro, é comovente e vulnerável. Como se despisse o texto de todas as palavras que seriam apenas decorativas e as personagens de todos os acessórios desnecessários para as trazer até nosso lado e até nosso reflexo — afinal, somos todos um pouco do mais difícil do humano, não é?
As autorias que referi inicialmente estão entre as que mais admiro no género e não as mencionei por acaso. Quando refiro Poe, faço-o para ilustrar a tensão que estes contos mantêm como constante desde o corte das primeiras frases e a sua proximidade com a estética que permeia o gótico. Menciono Tchekhov pelo realismo, Berlin pela atmosfera de dias difíceis entre personagens obsessivas que algures parecem ter perdido o rumo mas teimam em viver, a ambos pela proximidade com o quotidiano. Finalmente, Mansfield pela capacidade de, em apenas uma página, estabelecer o essencial da narrativa, o suficiente para as personagens e o seu contexto, até subtexto, se fazerem nossas e, por tal, termos necessidade de as acompanhar e saber o que lhes vai acontecer. Pirilampos oferece uma atmosfera de cinema, a sucessão de imagens vivas, uma coleção de instantâneos capturados por um ângulo tão original quanto inesperado.
Judite Canha Fernandes