Soy loca, lorca, feito um chien no chão

Disponibilidade: Brasil

O desejo é uma doença, Federico, e eu desejo a ti. Quero saltar no lugar em que a carne tremula, onde o gozo é macia flâmula desfraldada. Quero saltar no lençol, fazer o espreguiço de gato, lamber os pelos, as patas, lamber o dorso teu. Quero ser quarenta graus, quero ser o limite da estrada e o calor de virose debaixo do braço. Quero ser o salto do oitavo andar – o voo mágico de uma iniciação.

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O título cheio de aliterações da primeira novela de Marcio Markendorf, Soy loca, Lorca, feito um chien no chão, é bastante sugestivo. Ele remeteria de certa forma ao título do filme surrealista de Luis Buñuel e Salvador Dalí, Un chien andalou (Um cão andaluz), de 1929. Em comum, ambos introduzem o leitor/espectador num mundo em que tempo, lógica e clareza não se conjugam. Cabe lembrar que Lorca, Dalí e Buñuel eram amigos e fundaram a residência estudantil de Madrid, que reunia intelectuais da época. Esse, contudo, não é o único filme aludido por Markendorf, professor do Curso de Cinema da Universidade Federal de Santa Catarina; muitas passagens de sua novela parecem evocar imagens de O livro de cabeceira, do cineasta britânico Peter Greenaway, principalmente quando sugere o desejo de cumplicidade entre o corpo e a escrita.

Soy loca, Lorca, feito um chien no chão é um delírio, uma espécie de carta-confissão ou “conficção”, como Markendorf se refere à sua obra, de uma personagem que se diz apaixonada pelo poeta e dramaturgo espanhol Federico García Lorca. Na tensão entre o sexo e o gênero, a protagonista faz uma alusão à homossexualidade de Lorca, que poderia ser lida, por exemplo, no poema Gazel da fuga, cujos versos servem de epígrafe ao livro: “Muitas vezes me perdi pelo mar/ Como me perco no coração de alguns meninos”.

A personagem criada por Markendorf poderia ser também uma das filhas de Bernarda Alba, a matriarca autoritária de A casa de Bernarda Alba, última peça do dramaturgo espanhol, que enlouquece em razão das imposições da mãe. A propósito, o cenário de Soy loca, Lorca, feito um chien no chão lembra o “aposento branquíssimo do interior da casa de Bernarda”. Diz a protagonista de Markendorf: “Não tenho a mínima noção de quando enlouqueci, de como enlouqueci, nem do motivo para me manterem aqui. Não sei se estou em um hospício ou uma casa de cura espírita. Parece um apartamento apertado, todo branco, azul clarinho no banheiro”.

O fato é que a protagonista tem poucas certezas e uma suspeita, a de que lhe apagaram a memória: “Não tenho ideia alguma, o que me faz ter a paradoxal suspeita de que apagaram minha memória quando me colocaram aqui”. Apesar disso, afirma manter seu coração e desejo intactos e, com o que lhe resta de memória, ela luta para preservar vivo o nome de Lorca: “Eu o escrevo nas paredes, nos batentes das portas, nos tijolos queimados, no ferro retorcido da cidade arrasada. Para não te esquecer, eu tatuo teu nome na porção fantasma de mim”.

Mas ao mesmo tempo que se diz desmemoriada, a personagem afirma recordar a infância, a literatura e as coisas sensíveis. E passa a revelar passagens de sua infância e de sua vida apossando-se de citações literárias como esta que remete a Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll: “O relógio do mundo me dizia e eu repetia: ‘Estou atrasada, estou atrasada’. Fugia como um coelho, meus cabelos vermelhos, minhas orelhas atentas, um coelho branco e de alma negra. ‘Cortem-me a cabeça se eu não conseguir ouvir, decifrar, ver os sinais de novo e a tempo’, repetia eu como um mantra. Repetia em surdina até perder o sentido, até perder a palavra e o som, até me perder na loucura de saber que o destino era incerto […]”.

É dentro desse paradoxo entre a memória e o esquecimento que se encontra a personagem de Soy loca, Lorca, feito um chien no chão: “Acho que estou lembrando quando perdi a referência de tudo, quando me tornei a esquizofrênica do apartamento claro. Era hora do almoço. Eu estava com um homem. Falava animada sobre qualquer coisa que não me recordo e, ainda que recordasse, não teria a mínima importância diante do que se sucedeu. Pois, ao levantar a minha cabeça e olhar para o balcão do restaurante, vi um boneco de Papai Noel. Foi o suficiente para que um clarão passasse diante de meus olhos e eu já não soubesse mais onde estava”. Não seria o esquecimento a própria vigilância da memória, como afirma Maurice Blanchot?

Para não esquecer, a personagem precisa falar, mesmo que fale “sem entender nada sem compreender a sintaxe a morfologia a pontuação e apenas deus apenas deus entenderia a língua na qual pronuncio meu nome teu nome meu nome o nome de ninguém da ninguém que ecoa no violão da garganta […]”.

É preciso falar para não morrer, mas a fala quando dita, diz o escritor francês, “apaga-se, perde-se sem recurso. Esquece-se. O esquecimento fala na intimidade dessa fala, não apenas o esquecimento parcial e limitado, mas o esquecimento profundo sobre o qual se ergue toda a memória”.

Soy loca, Lorca, feito um chien no chão é uma novela que inclui em seu enredo também uma peça de teatro, Carn3s do coração, escrita pela protagonista com a intenção de encená-la para Lorca. A peça, em três atos, é composta de monólogos protagonizados por duplos de Federico García Lorca e por uma mulher, provavelmente a própria protagonista.

Neste livro múltiplo, o leitor se perde, se encontra ou se reencontra num outro lugar da ficção.

Dirce Waltrick do Amarante

_outras informações

idioma: português
encadernação: brochura
formato: 14 x 19,5
páginas: 84
papel: pólen 90 gramas
isbn: 978-85-7105-059-4
ano de edição: 2019
edição: 1ª

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