A palavra abandonar traz para si duas formas de manifestação que, lá no fundo, conversam com o eu, mas de maneiras opostas. A primeira forma de abandonar é sofrer, é sentir-se engolido pelos dias e cólicas e diarreias e pontos a serem batidos, ônibus, pressão, homens brancos, micro-ondas. Essa é a forma comum do abandono, você pode vê-la agora mesmo pela sua janela: pessoas amontoadas em dias amarrotados, sem a sutil possibilidade do encanto. Kierkegaard, que também está aqui dentro do livro, já falava da possibilidade como um presente, como uma presença que se perde ao longo do tempo e, por isso, valiosa. Nesta obra, o sujeito, na sua primeira espécie de abandono, está apavorado com a urgência da poesia, que o invade como praga em cidades grandes, carece da rendição ao que não é o mote do capitalismo: o próprio exercício poético. O livro captura essa urgência: tudo o que é abandono, solidão dos dias, é metáfora para a falta e para aqueles homens que acham que se anestesiam, até serem acertados em cheio por ela. À pergunta “que pesa feito escombro / sem pesar uma migalha?”, eu ouço responder: é a falta. Entre surrealismo, magia, palavra-pólvora, Orides Fontela e Leila Míccolis, Raul Colaço fala o seu nome e reivindica o homem “ele mesmo”, que vai se deliciar no outro tipo de abandono, o abandono no outro. Georges Bataille já dizia, aqui em palavras muito minhas, o sexo é a completude, mas carece do abandono. Só se conecta quem abre o seu eu antes do seu corpo e este talvez seja o mais potente e eficaz abandono: não há volta, está feito, entra-se no outro para que o outro seja dono em mim. Vem daí a segunda percepção que contrapõe a lógica da primeira, que a dinamita: o abandono amoroso, o abandono da delícia, sagrada liturgia de abandonar o barco em mares alheios. Este amor impróprio, irregular, sobrando para fora do recipiente, vazando corrente, imperfeito, o amor da ordem do desejo, nada limpo nem positivado, diz a que veio numa época de sentimentos minimalistas, é feito de sangue, feitiço, fezes e gozo. A reivindicação graciosa do homem como bicho amoroso, daquele de se amarrar aos outros. Eu diria um golaço, para fazer jus ao gosto do autor, bem, serei mais piegas, é um kolaço, com k de Kierkegaard.
Yasmin Galindo