“E a 11 de setembro de 2022, […] o coração do rei português D. Pedro IV e imperador brasileiro D. Pedro I voltou ao lugar em que repousava desde 1834, preservado em formol num bocal de vidro, na Igreja de Nossa Senhora da Lapa, no Porto (pt), depois de completar uma viagem de dezanove dias ao Brasil para que a real e imperial relíquia estivesse presente nas celebrações do bicentenário da independência do Brasil. A exposição do coração ao público português, que fez fila para o contemplar, bem como a cerimónia do seu transporte transatlântico mereceram holofotes mediáticos, com o presidente da câmara portuense a defender que a relíquia não poderia faltar às celebrações do bicentenário; seria “uma desdita”, assim escreveu [em artigo no diário português Público].
[…] [O]rganizaram-se cerimónias políticas alusivas ao tema genérico “dois povos unidos por um coração”, não sem as críticas contundentes dos dois lados do Atlântico que, naturalmente, chamavam à atenção sobre o facto de a autorização da Câmara do Porto para que o coração experimentasse a viagem aérea transatlântica coadjuvar a sua instrumentalização política pelo governo brasileiro, entretanto também já bem defunto. […] Para comer com o coração de Dom Pedro é a resposta poética que preserva o coração, mas desconstrói o fetiche, com os seus mitos lusotropicalistas sobre nações unidas por um só coração e uma sociedade integradora das vidas imigrantes, recorrentes nos discursos políticos, mas que demasiados não encontram o seu respaldo no dia a dia numa sociedade pós-colonial que, estruturalmente patriarcal, ainda não exorcizou os seus fantasmas coloniais e cuida dos seus fetiches.
Considerando de forma interseccional que a mulher imigrante é um duplo alvo da xenofobia, machismo e misoginia que grassam de forma cada vez menos velada, a poesia de Melo constitui, ainda, mais um reduto de resistência. É deste lugar que a autora escreve, o que, inclusive, deixa claro em “Uma nota da autora” feita, aqui, nesta publicação: “Este livro foi escrito por uma mulher imigrante, latino-americana, brasileira, nordestina e comunista”, convocando vários lastros e camadas sobre histórias de alteridades.
[…] É também uma reparação com vista a um futuro decolonial que encontramos em Para comer com o coração de Dom Pedro, um livro sobre como devemos atentar às dores, as nossas e as dos outros, representadas para que possam ser transformadas com vista a uma comunidade de afetos. Que não desespere, então, o leitor que inicia agora a leitura deste livro: comer o coração de Dom Pedro, mantido em formol, seria um risco certo de saúde pública e a sua autora sabe bem disso. Uma comunidade de futuro, inteira, inclusiva e plural, tem de se ancorar nos afetos que acompanham o cuidado do Outro como a nós mesmos. Saibamos, por isso, comer com o coração.”
Margarida Rendeiro
trecho do prefácio