Alguns livros buscam a linha reta, a promessa organizada de um começo, meio e fim, não necessariamente nessa ordem, porém razoavelmente garantidos na organização mental de quem se dispõe a ler.
Mas há alguns livros que parecem se deleitar com a matéria irracional do mundo; nesses livros, as estórias se espraiam caoticamente (ou numa “caosmose”, como conceituava Félix Guattari): uma invade a outra, sem compreendermos bem se há ali qualquer relação causal, se estão mesmo concomitantes, ou se o próprio tempo ameaça ver sua trama se esgarçar diante dos nossos olhos.
É o caso desta Terebentina de Alexandre Gil França, em que a promessa de um livro de contos logo se torna uma espécie de labirinto no qual a prosa narrativa abre lugar ao modelo de um script cinematográfico ou de roteiro teatral, por vezes hesitante entre a prosa e o verso, e muitas vezes aceitando um narrador (ou roteirista) que invade o texto como um eu que altera os fatos que ele mesmo organiza. E cada coisa acontece num universo que pode saltar do mais obcecado realismo para cenas delirantes em passagens vertiginosas, num instante.
Gil França então constrói um mundo de instabilidade e cruzamentos que recusam as hierarquias organizacionais. Notícias de rádio e jornal se cruzam com atores vestidos de cartas de tarô; um ônibus de lotação pode se tornar um avião de primeira classe; torturadores passam por bailarinas e criam suspeitos; e mariposas podem ser o sinal de loucura, ou então um ataque inclemente etc. Tudo está acontecendo no cruzamento das suas possibilidades de leitura, porque essas possibilidades são os modos mesmo da existência aqui proposta.
E, um último detalhe, que conforma muito do que encontramos nesta obra: tudo é narrado com um fascínio absoluto pela matéria-mundo. Cheiros, cores, sabores, sons, texturas, do nojo ao deleite, e vice-versa: o mundo aqui reluz intenso, atinge todos os sentidos, como que para apenas desnorteá-los. Talvez esteja num grude que não sai mais, ou que sai apenas com terebentina, na medida mesma em que ela deixar seu cheiro e seu sabor nos novos corpos.
Guilherme Gontijo Flores