Sobre este livro
A escritura salva de um naufrágio. Que poderia ser salvo de um naufrágio, quando o que se perdeu foi um mundo e, com ele, a língua dos restos? No mar, no fundo do mar, deixamos tudo o que não tem lugar, diz a escrita de Ana Kiffer, e ali, no entanto, tudo fica. Em fragmentos despedaçados, em estilhaços, esses restos nos dizem, como queria Walter Benjamin, que nada do que tem acontecido alguma vez pode ser considerado perdido para a história. Nem para a escritura, acrescenta Ana. Isso porque a escritura de Ana Kiffer começa com uma contextualização contundente: Rio, 2017. É o presente, o momento atual, um momento de cataclismas e catástrofes; não se trata de um naufrágio individual, mas de um dilúvio, uma enchente produzida pela fúria do mar, o mar que toma tudo, diz Duras.
Esse dilúvio, como o dilúvio universal, é um castigo. Neste caso, contra um povo que nunca conheceu de fato o diferente, que cerceou a diferença através de sucessivos massacres históricos, e que em castigo, o mar fez desaparecer. A escritura de Ana conecta de modo sub-reptício a catástrofe natural com a histórica, porque no fundo, hoje, as duas são as duas faces de uma mesma direção.
Também essa nota inicial, essa introdução, nos diz que o que o mar nos tem devolvido não é uma obra, mesmo quando se trata de um livro de poemas, aforismos, fábulas, vidas visíveis e invisíveis, e verdades. Quer dizer: trata-se de um livro informe, como os que amava Artaud, a quem Ana Kiffer conhece tão bem; ou melhor: de um caderno que pode acolher a escritura indómita que não pretende construir uma obra, um todo homogéneo, uma escritura estabilizada. Por isso os poemas se entrecortam, os fragmentos em prosa se interrompem. Não há uma estabilidade nas formas porque o livro mesmo procura a metamorfose; ou melhor, o mar, todo o mar: o que nele se perde, o que ele arrasta, mas também, nesse arrastrar, também carrega e guarda.
Nessa indistinção entre história e natureza mergulha-se também o que fica de um eu que perde o rosto e abandona o refúgio da individualidade: por isso a escrita não é íntima nem externa. A perda de si involucra essa escritura que se confunde com o outro ou com a outra, de modo indistinto, porque do que se trata é de advir qualquer um, um qualquer ou uma qualquer, sem nome. Pode por isso haver cães e lixo e ossos, mas tem o sexo; um livro enfim aberto como um navio que se curva até que a água entra pelas bordas e o destrói.
Florencia Garramuño