Alguém já disse que a arte poética é mais transpiração que inspiração. Desde o título, Sob esses rios que voam, de Edmon Neto, é um livro que transpira. Seus versos nascem do suor do corpo e da umidade impregnante do ambiente amazônico. Como sabemos, os rios voadores nascem da transpiração da floresta. São correntes de ar invisíveis suspensas sobre nós, a levar umidade da Bacia Amazônica para outras regiões do Brasil, especialmente as do Sul. Trata-se, afinal, de comunicação. Mas uma comunicação que não informa: forma — ajuda a formar e manter as condições vitais dos ecossistemas.
Mineiro vivendo na região do Xingu, no Pará, Edmon transforma em poesia a experiência quase etnográfica de ser um “estranho familiar” numa terra nova que, no entanto, sempre foi sua. Redescobre, assim, uma humanidade que não consegue se reconhecer sem uma profunda comunhão com a terra, para citar seu conterrâneo Ailton Krenak.
Nesse processo criativo, o eu lírico evapora-se, mesmo quando usa a primeira pessoa, para dar lugar à perspectiva do poeta cidadão que se coloca inteiro na escrita. Ele não quer representar nada, mas assumir um ponto de vista, o seu. Faz-me lembrar de Viveiros de Castro: “Uma perspectiva não é uma representação porque as representações são propriedades do espírito, mas o ponto de vista está no corpo”. Não o corpo fisiológico ou anatômico, mas esse “conjunto de maneiras ou modo de ser que constituem um habitus”, ou seja, “o corpo como feixe de afecções e capacidades, e que é a origem das perspectivas”.
A perspectiva não é, portanto, um atributo exclusivamente humano. É por isso que, acompanhando a voz do poeta, ouvimos também as vozes de outros corpos, humanos, não humanos e inumanos. Animais selvagens, rios e igapós, visagens, meninos, música, chuva, odores, a cidade (sim, a Amazônia é também urbana), ruas, meios de transporte, nuvens, calor etc. Ao modo como os rios voadores do Norte se comunicam com o Sul e o Sudeste, essas vozes que se comunicam com o poeta e com o leitor nada informam, antes, alimentam seus corpos, fortalecendo neles um multinaturalismo — ainda Viveiros de Castro — que não separa cultura e natureza, poesia e política. Comunicação-comunhão. Celebração desse estranhamento familiar que nos une e nos dissolve, para então nos religar outra vez, elementos vitais interdependentes, Sob esses rios que voam.
Eleazar Carrias