Sem mim não há dia é o livro de estreia de Fellipe Fernandes F. Cardoso. Nele, somos chamados a ver o mundo por trás das retinas do narrador: um homem que um dia acorda sem os movimentos do corpo e completamente cego. O narrador, que é o único personagem não descrito e sem nome (sabemos dele apenas F., uma inicial na assinatura de uma carta), nos é apresentado por meio de seu raciocínio elegante, altamente filosófico, de vocabulário rebuscado e pensamento analítico.
O narrador perde sentidos, mas, como num mecanismo de compensação, sua percepção se aguça e a feitura do livro se torna, na leitura mais do que tudo, uma aventura sinestésica. A limitação pelo espaço do corpo incapacitado é o ponto de partida para uma viagem intensa a um universo de imagens e memórias, sempre com muita atenção aos detalhes, ao que é nuance; àquilo que está à margem, mas sem o qual não haveria rio.
No decorrer da narrativa, somos levados a expiar e espiar suas memórias. O romance então vai a todos os interiores deste homem. Do Brasil, com o seu calor, sua família e seus cheiros; da sua depressão e a sua incapacidade de gerir a própria vida; do apartamento e os movimentos suaves que denunciam sua relação com o marido, com a mãe e a terapeuta. Descortina-se também um mundo repleto de simbolismos. O kudzu e suas raízes, a serpente, os gatos.
Quando interage com o mundo externo, o narrador coloca suas relações no divã. É a sua chance de testar a ligação que ele tem com as pessoas que constituem a sua vida. As que estão ali por obrigação, por dever ou por afeto. Seria o amor um ato de altruísmo ou de constrição? Há algo de profundamente socrático quando suas provocações e reflexões se dão por meio do diálogo que faz com cada interlocutor. Incluindo o leitor, a quem estende a mão diversas vezes.
Já acomodados na pele do narrador, não conseguimos mais distinguir o que é impressão do que é sonho. Não sabemos mais se estamos dormindo ou acordados. E, sem que nos demos conta, concluímos que sonhos e impressões são o que constituem a realidade privada e individual de todos nós. “Não sei se estou dormindo ou acordado, porque não vejo a diferença”, afirma em determinado momento.
Sem mim não há dia é sobretudo um livro de exploração e descobrimentos, de vulnerabilidades de uma personagem com uma poderosa visão, ainda que não possa mais andar ou enxergar. É, afinal, um romance de reflexão: profundo, instigante e, sem dúvida, marcante. Um elogio à linguagem dos desejos e culpas provocados pelo desgaste da vida.
Carlos Raffaeli