O conteúdo deste livro é feito por um eu poético das fronteiras, a começar pela territorial, cujo combustível de mobilidade é a fuga, “e não me interessa o lugar/eu gosto da sensação de ser aquele que está sempre indo embora”. Travessia de países e cidades. Do mesmo modo, o tópico é desdobrado pela geografia do corpo ou do amor. A obra alarga os limites normativos a partir do pensamento queer, esforço visível nos fragmentos desconcertantes e na aderência à causalidade. Em cada página, são sussurradas confissões íntimas, daquilo que o eu lírico experiencia vida afora. Sujeito de carne e palavra repleto de desejo, que pede em um dos poemas “afasta daqui a normalidade do nosso beijo”.
Num bordejo intersemiótico, o ritmo poético das imagens evocadas e dos assuntos cotidianos é engendrado por uma beleza sem esforço. Tudo isso organizado na encruzilhada entre “o erudito, o popular e o massivo”. Lendo o livro ao revés, a última sobra que institui como má ideia adiar a vida aponta para o imperativo da liberdade na vivência do sujeito. O primeiro poema, por sua vez, sugere um ser híbrido que, posteriormente, alcança a vontade — “queria ter um corpo-aranha para dividir-me entre vários destinos”.
Na obra, sujeito e objeto de desejo se confundem, estes têm seus contornos fundidos. E, para além, a percepção particular das coisas se realiza muito bem no registro. O certo é que isso se dá pela atenção ao mundo e interlocução com outras produções. É, sem dúvida alguma, um livro “para morar na sua estante/entre Matilde Campilho e Caio Fernando Abreu”.
O projeto inaugural de compartilhar as andanças internas e externas, em textos que versam a respeito da tentativa desafiadora de inscrever o mundo em alguma gramática, é admirável. Dividido em seis sessões, Restos é, dentre tantas definições possíveis, um retrato do nosso tempo à graça de uma potência transatlântica mineira. E que ninguém se engane a respeito da afetação diante da obra, afinal, a pontaria certeira impõe sensibilidade de turista a quem lê, e, como o autor atesta, “é impossível sair impune de uma viagem”.
Maria Luísa Sousa