Maikóvski deve estar emocionando em algum lugar § Pensando que mesmo que no Brasil ninguém mais seja feliz, […] § Alguém insiste na vitória dos camaradas escrevendo poemas de amor:
São versos de O ano da fumaça, primeiro livro de poesias de Pedro Kalil, autor de uns quantos zines, do infantil O menino que queria virar vento (2012) e do monólogo Charlote-peixe-borboleta (2016). “Coloco por extenso para ver se é possível manter alguma extensão”, lemos em outro destes poemas que tateiam limites temporais e dilatações sociais do ano de 2019 em que pela última vez experimentamos o mundo tal qual o conhecíamos antes do confinamento universal.
O livro se abre e se fecha sobre si e outros textos. Tudo começa por meio de uma correspondência com Onde estão as bombas (2019), de Tatiana Pequeno. Daí desbordam incontáveis intertextualidades com 2019 e inflexões nas camadas de nossa percepção temporal. Há um menino às iminências da reabertura democrática; há um adolescente frente às disputas hegemônicas dos anos 1990 e a compasso com o projeto progressista dos anos 2000. E junto a eles o adulto escapando das bombas lançadas em 2013, vivenciando explosões lacrimogênias da esperança que tão logo passaria a ecoar a falência institucional da primeira década ganhada em nossa história enquanto país e cujo fim nos trouxe até aqui — onde estamos?
Continentes, cidades, amigos desgarrados, cinema, debates políticos, Paulinho da Viola e Sepultura: a estrutura monádica de O ano da fumaça acolhe fragmentos pessoais de uma totalidade que não podemos tocar sozinhos. E por isso predica que “as leis que só existem agora”, levadas ao passado, “poderiam despertar rebeliões em nome de direitos a serem conquistados”, ao passo que, trazidas ao futuro, “poderiam despertar uma derrelição generalizada”.
O ano da fumaça está longe de nos alimentar apenas com histórias de perda. Reivindica o absurdo do ridículo, ou seja, quer o pathos da utopia gregária em vez da patologia melancólica. Daí o registro textual optar pela flutuação entre o oral e o normativo: a linguagem é cindida por uma voz que anseia entender (com outras) a trama do que nos resta dos minúsculos acertos do passado na extensão de nossas vidas erráticas. A poética partida do livro suscita nos leitores a sensação de sermos diante dela senão um símile. Afinal, assim como nos poemas deste livro, “sempre estivemos — quebrados — mas ainda inteiros, sempre remendados, sempre adiante”.
Davis Diniz