No início do século XVII, o poeta Ben Jonson inventou a palavra “dramaturgo” (em inglês, playwright) para insultar um poeta rival. Implicava Jonson que o seu rival era tão limitado do ponto de vista literário que apenas era capaz de estruturar peças para teatro e nada mais conseguia fazer com palavras.
Desde aí, a dramaturgia deu grandes reviravoltas, entre a aclamação e a rejeição absolutas, mas viveu sempre na hesitação entre ser uma obra literária completa e ser componente — ou peça — vital de um acontecimento cénico e performativo.
Essa tensão vive com clareza nestes textos para teatro de Ricardo Cabaça. O Ricardo é um artífice da palavra e sente-se que esta é o ponto de partida para o seu trabalho não só dramatúrgico como também cénico.
Os textos que se encontram neste No bico da Cegonha são “Esqueletos vivem dentro de sonhos”, “Fake news: Naked Fews” e as peças curtas “Ninguém morre ao domingo” e “Anti-Benjamin”.
Há claras afinidades entre “Esqueletos vivem dentro de sonhos”, “Ninguém morre ao domingo” e “Anti-Benjamin”. Nelas notamos aquilo que são as marcas mais recorrentes da dramaturgia do Ricardo: o desdém pelo naturalismo, a busca da expressão justa para cada momento, para cada situação, para cada personagem, que pode ir da obscenidade à poesia, da referência erudita à última trend.
Em “Esqueletos vivem dentro de sonhos”, assistimos a uma série de diálogos, organizados em rizoma, entre várias personagens, que se substituem, equivalem, sucedem. O diálogo é a forma mais rejeitada pelo teatro contemporâneo, mas claramente também aquela que mais fascina o Ricardo, por aquilo que tem de abissal e de risco, pela forma como demonstra que entre duas personagens que falam há sempre um fosso de solidão e incompreensão. Mas se esse é o princípio de todos os diálogos, tal é dinamitado pelo Ricardo, que confere às suas personagens a consciência aguda de serem personagens: não personagens em busca de um autor, como as de Pirandello, mas personagens conscientes da sua condição e que se deliciam na liberdade que isso lhes dá de terem e serem a identidade que quiserem — ou com mais rigor, que o escritor lhes der. Pois ao contrário do que é regra sagrada do drama, em todos estes textos se sente o pulsar irrequieto do autor, a perguntar-se que teatro é este que está a construir diante dos nossos olhos.
Em “Ninguém morre ao domingo”, assistimos a um dos lugares de eleição do conflito dramático: a família, num tempo que é de eleição da família, o Natal. Mas é uma família em que tudo pode ser real, entre as relações, os sonhos, os pechisbeques e as personagens de Hollywood. E, entre elas, tudo se transforma, pois é uma realidade feita da incerteza e não da regularidade: afinal, a morte nunca escolhe os corpos e os dias a que chega.
Por sua vez, “Anti-Benjamin” é um quase palimpsesto de O doido e a morte, de Raúl Brandão, se Brandão escrevesse depois Walter Benjamin, em dias de pouca radicalidade e muito marketing, quando é mais importante a festa da empresa que o sentido da vida, quando as palavras servem para esconder a realidade, e não para a comunicar, para separar e não para unir, e a morte já não existe a não ser como um estorvo, o desejo é infinito desde que seja transacionável, e a identidade é um brand que se vende nas redes sociais a troco de prestígio ou dinheiro.
Em todos estes casos, são textos investidos no potencial surreal que existe entre o banal e o imaginário, no qual descobrimos uma consciência lúcida de que o real não é apenas aquilo que acontece no mundo físico, mas o que acontece ou poderia ter acontecido em todos os mundos possíveis da imaginação, do sentimento, da perceção, da arte e da cultura. E por isso pressentem-se neles afinidades com a obra do dramaturgo espanhol Javier Tomeo, que também encarava a forma dramática como uma porta infinitamente plástica de acesso ao possível e impossível.
Já “Fake news: Naked fews” distingue-se claramente das outras peças não só pelo seu pendor mais cénico, com alguma interação com o público, como pelo estilo mais ensaístico que, como em muito do teatro que se faz hoje, se arriscam respostas à atualidade. Neste caso, às chamadas “fake news”, ou notícias falsas. Fake news foi um termo que surgiu em anos recentes para exprimir a angústia dos mass media em descobrirem que não eram a única fonte de verdade social. Rumores, falsidades, mentiras, supostas verdades são algo que sempre existiu nas comunidades humanas, e tanto estiveram na origem das matanças de judeus como na Revolução Francesa. A diferença é que o digital achatou os meios de comunicação, colocou notícias confirmadas lado a lado com as mais delirantes teorias da conspiração, como se não houvesse qualquer diferença entre elas. Por via disso, as fake news foram culpabilizadas de todos os males recentes, desde eleições populistas a negacionismo da pandemia, etc. Não sabemos se as fake news alguma vez acabarão ou que impacto terão na nossa sociedade, mas o Ricardo dá-lhes uma resposta tão surpreendente como audaciosa, na senda de correntes filosóficas como o construtivismo e o pragmatismo: a de que a verdade não é um valor absoluto, mas está sempre ao serviço de um bem social maior.
Apesar das inevitáveis variações, em todas estas peças, sentimos a presença confiante e livre do Ricardo, que não tem medo de se assumir como autor nestes textos, a espreitar atrás de cada personagem e de cada fala, sem precisar de chamar a atenção do público de que elas têm um autor. E mais do que para um dramaturgo, as palavras que compõem este livro apontam para que o Ricardo Cabaça é principalmente um escritor, que escolheu a forma teatral — com tudo aquilo que esta tem de frágil, efémero, vacilante — para ser a sua forma de expressão literária de eleição.
jorge palinhos
dramaturgo, investigador e professor universitário