Comecei a leitura de não tenho fogo no mapa, livro de estreia de lucas lins, como quem tira a roupa e entra nua e afoita “mar adentro”, navegando em suas águas — elemento-chave que vem nos apresentar de um jeito lindo a primeira parte do livro. Afinal é a água que em nós predomina, dentro e fora. É com ela que a Lua dança todas as noites suas coreografias sentimentais. É também na água que mora o tesão poético que sentimos ao ler este sublime livro.
Aristóteles afirmou que no átomo encontravam-se os quatro elementos (água, ar, fogo e terra), de modo que o ser humano seria constituído por essas quatro forças, mas depois desmistificou-se essa ideia do filósofo grego. Faria sentido dizer que somos emoção sentida, inteligibilidade espiritual e intuitiva, ação temperamental para impulsionar a vida, materialidade para que se faça corpo e presença-gozo?
Em sua escrita, lucas lins tece sua poética a partir dos elementos que constituem a nós e à natureza, mas também diz daquilo que nos difere como tecnologia orgânica, como corpo-arapuca. Trata-se de uma escrita-redemoinho que flerta com um determinado concretismo por fazer caminhos outros com as palavras, que aqui podem ser rochosas, densas como a terra, cheias de mistérios por descobrir, possibilitando que um poema seja dois ou mais, que inventemos rotas outras para ler ou até mesmo desler. Mais que a referência aos arquétipos desenhados pela astrologia com os quatro elementos (como evoca o título da obra), a escrita de lucas é cósmica e cosmogônica, carrega o desejo de desatar nós monoculturais que se inscrevem no corpo e no imaginário para, assim, poder bifurcar ainda mais as encruzas que antes nos levavam sempre a apenas dois caminhos, num eterno jogo maniqueísta: ao branco e ao preto; ao dia e à noite; ao céu e à terra; ao macho e à fêmea; ou ao sagrado e ao profano. A poesia é impossível por meio de uma lógica binária, pois, ainda que não haja equilíbrio, ainda que a escassez se faça presente, ainda que nos falte “fogo no mapa”, resta-nos a terra, o ar e a água de cujas entranhas pode brotar calor em pura lava.
E, se nos falta fogo no mapa, poderemos encontrar a chama viva da poesia nesta escrita, que já se mostra grandiosa. Eis um livro que nos convida a ir além de todo e qualquer limite para o afeto e para a literatura, esta feita das margens, como disse João Silvério Trevisan — nossas margens e de outres —, e talvez nessa origem resida a potência viva da escrita transviada: uma poética que desvia de profecias antigas para re/escrever novos mundos.
Anum Costa,
escritora, artista e produtora cultural