_sobre este livro
O jogo de linguagem que nomeia o livro de estreia de Roberta Freire irradia sentido para muitos lados, para além de servir como definição dessa poesia ou convite ao segredo contado em quase outra língua. É que a consoante “p”, que organiza o jogo de deformação das palavras, é pronunciada como um antibeijo, um beijo que, em vez de sugar o ar atritando-o entre os lábios, sopra-o numa breve pancada depois de mantê-los, os lábios, colados. O ruído dessa consoante atrapalhando a decifração das palavras aproxima-se, então, estranhamente do toque, do beijo, do encontro.
É na contradição entre o que se fala e o que não se entende, o que se mostra, mas não retorna – o segredo já conhecido –, que os poemas de Roberta Freire se escrevem. O texto elabora a diferença, depois dos encontros, das relações, da caminhada, oferecendo frase e vocabulário ao que parece lateral, latente, mesmo perigoso a um mundo estranho: a feminilidade, o erotismo, a escuta. Por isso, a insistência em saber quem, entender o que faz, perguntar-se por que odeio. Desconfio dessa usina mais aparente dos poemas de Língua do p: “o que faz alguém / tão tarde / segurando delírios / tão perto / de cães?”. Desconfio, para conseguir ler tudo o que for ambíguo, falha, errância, para ficar no analfabetismo do “p”, em vez de cair no jogo da decifração.
Como o casal que aprecia a arquitetura por não saber para onde ir, como a mocinha sozinha na noite que prefere a violência dos corvos, como um corpo cujo centro – o umbigo – é uma cicatriz, em vários momentos, os poemas de Roberta Freire escapam do cálculo da leitura e dizem o que não parecem dizer. A imagem prevista não se cumpre, e a outra imagem produzida espanta a leitura e altera a matéria da poesia, o emaranhado de palavra e memória.
A voz desses poemas vive da espiral entre a casa e a rua, o subúrbio e o centro da cidade, a família e os amores, e o resultado é o de um sujeito em expansão, por isso instável: “fui devorada / pelo misticismo de um dia de sol” ou “minha bandeira é tua saia, isabel”. As marcas de identidade, efeitos do poema. Por isso, nesse lançar-se, em estreia, ao espaço público, os poemas de Roberta engendram a subjetivação de uma voz na língua do “p” politizada.
Luiz Guilherme Barbosa