Leitor, leitora, tens nas mãos uma coluna de sangue, uma linhagem de mulheres. Elas chamam-se Vénus ou Eva, Salomé ou Ofélia, Ana ou Ava. São muitas, e são uma só; existem agora, existem em todos os tempos. Cada qual descobre em si a matéria do corpo, a fervura do prazer, a inesgotável surpresa de existir; mas também, em torno, a lei dos pais, das hordas, dos álbuns de família; a ameaça dos predadores, o horror sempre latente.
Leitor, leitora, esta é uma história de metamorfoses: do espanto com que um corpo descobre em si desejo, matéria e pujança, do inebriamento com que reconhece a mais íntima proximidade com os animais, os elementos, a cúpula celeste. Porque tudo se parece, se aproxima: corpo e mundo, desejo e matéria. Mas esta é também uma história assombrada por mortes, assassinatos, uma ordem instituída, a sua força asfixiante. Mais ainda: esta história diz que tudo é duplo, tudo é ambíguo: as águas que baptizam também afogam. E, contudo, às vezes das águas profundas um corpo ergue-se, redivivo, mais forte, aspirando sofregamente o seu quinhão de ar.
Esta é uma história – novela, poema, encantamento? – pela qual Luiza Nilo Nunes conta muitas histórias; é um prisma de nomes, desejos e medos. É a vida inteira, e a sombra da vida. Leitor, leitora, esta é a tua história.
Pedro Eiras
De Levanta-me das águas profundas guarde distância quem recusar mergulhar em necrotérias águas, falar a escura língua dos cervídeos, provar do cálice do parricida, ouvir o fulgor dos ossos quebrando, louvar os primevos incestos ou sentir o gosto acre da vingança; mas quem aceitar, com Ava e Ana, perfeitos anagramas, desenhe o círculo de uma insurrecta natureza por dentro da escrita febril de Luiza Nilo Nunes que, a cada página, nos golpeia como uma danação, nos volteia como uma salvação.
Ana Paula Inácio