Quando assisti ao Melancolia do Lars von Trier, uma imagem ficou gravada na minha memória: a de uma noiva que tentava se mover numa paisagem de lentíssimos verdes e marrons, as árvores frondosas do caminho carregadas de certa majestade doída que me parecia então inapreensível por si mesma mas
que eu podia fácil apontar com o dedo na tela e dizer, “Aqui”. Estava lá: na confluência de raízes atadas aos pés de uma mulher de branco, a terra e a gravidade dispostas sob o desfiado de luares e grinaldas. À linha do abismo.
Neste O Congresso da Melancolia, de Léo Tavares, sou tomada por certeza semelhante. Ao entrar em cada conto, ao mesmo tempo em que fracasso – e fracasso porque a melancolia é um mal difuso, e eu não tenho palavras para falar do que ocorre com seus personagens –, ao mesmo tempo em que me calo nesse sentido
avanço definitiva em outro: sou capaz de indicar na página em que altura de cena, em que ângulo, essa paixão lassa toma forma e aparece.
É que Tavares domina como poucos a arte de compor imagens com a voz, dizer com imagens.
Assim, quando na leitura de “Lobuno-Azulado-Fantasma” quase perdemos Miro das mãos e começa a faltar pé às palavras, quando ali o território do indizível chega ao limite, nesse momento surge a miríade de cavalos e nos alcança pelos olhos.
Quando o desabrigo de Rose (“O Salto dos Bisões”) beira em nós o insuportável, eis que o foco lança luz a uma tela de celular, dentro a imagem de algo gemendo em meio à manada de enormes mamíferos.
Quando Silvana se descola de si (“Anátema, o Lobo”), e tudo é ameaça do sem tempo e sem espaço da cidade de sua infância, aí a perspectiva arranja bordas num busto: o lobo encurvado na praça central.
De viagem rumo ao mesmo evento acadêmico – o congresso de suas próprias ruínas expostas –, as figuras destes contos conjugam imanência e evanescência, betume e branco-véu-translúcido, carne-múmia e cortina de névoa, o maciço de uma pedra sacrificial e a fumaça de um cigarro que queima ao fundo de uma cumulus nimbus.
Essas duas forças da linguagem, da palavra como coisa viva, como vida, penso que são elas que se reconhecem num grande livro. E são elas que atravessam O Congresso da Melancolia.
Mar Becker