A potência redentora da Literatura foi mais uma vez comprovada durante a pandemia que se abateu sobre a espécie humana a partir de 2020. O consumo de livros aumentou exponencialmente. O mercado editorial experimentou expressivo crescimento em suas vendas. E as pessoas passaram a escrever mais. Algumas delas, mais íntimas do universo das palavras, identificaram nessa prática uma possibilidade privilegiada para o autoconhecimento ou, ainda, para o contato com as próprias verdades. Aqui chamadas de “Contos de Fuga”, as doze narrativas breves recolhidas por Clarissa Menicucci em seu longo período de ‘isolamento social’ são, pelo contrário, um território em que ela enfrentou seus fantasmas, explorou suas memórias e, sobretudo, inventou mundos fantásticos (como o planeta Ode), circulando livremente, sem restrições, por lugares pouco ou nunca visitados. ‘Transformei minha escrita em rua’, registra a autora, na introdução que abre esse volume.
A relação com a criação literária é complexa. Clarissa revela escrever para apaziguar as dualidades nela abundantes. Diz que é na produção textual que se sente inteira, sendo o lugar em que tenta ‘digerir’ o mundo real, o espaço em que se perde e se reencontra, estando sempre em busca. Não é outra a jornada empreendida pelos personagens que aparecem nesse livro.
Em constante deslocamento, não é possível, para nenhum deles, sentir-se à vontade na vida, à qual não aderem sem angústia. Seus corpos sofrem. Atormentados, portam mal-estar permanente, responsável por dores terríveis e uma aguda sensação de ‘desencaixe’. Incomodada, Átroa troca seu coração humano por um de galinha. José enxerga num sofrido cavalo o covarde que sempre foi. Antípoda não consegue ser feliz em dezembro. Nem, provavelmente, em qualquer mês do ano… A mente insone tenta ‘redefinir a ordem de terras, folhas, assentamentos de planos. Meu corpo dói, a cabeça pulsa, meu estômago está velho (…)’. Etéreo está fora do tempo. Vivendo, para sempre, no eterno presente, perde a chance do futuro.
Sintonizada com as questões mais agudas de sua época, a contista também aborda o espaço e a voz da mulher na sociedade contemporânea, focalizando, em “Parto”, o duro embate que ela precisa travar para afirmar-se, para proteger a sua saúde e a sua integridade física. Plena de esperança, a narradora do conto não desiste de seu sonho, alimentado desde o nascimento do filho: ‘Mas eu sei que podemos mais. Derrubar o patriarcado com sangue e placenta. Fizemos juntos, eu e meu menino. Fugimos das ordens. Nascemos.’
A insurgência contra o status quo adquire o tom da crítica ácida em “A tabela perfeita”, profunda reflexão sobre a insensibilidade social e a burocracia, representadas por Pedro Otávio, o PO. Acompanhar a sua saga é perceber como as estruturas vigentes têm o poder de penetrar por todos os poros daqueles que a elas se submetem, desumanizando-se irremediavelmente: ‘(…)sentia um aperto no peito, como se linhas verticais e horizontais se colocassem entre suas vértebras, causando uma sensação de desencaixe corporal, uma angústia física e psíquica assustadora para um homem tão organizado em suas relações com o mundo’.
Em mais um momento interessante do livro, quando apresenta “A mulher e o Ipê”, Clarissa Menicucci abre uma fresta para a ternura, convocando entre seus leitores as suas sensações mais suaves, ainda que o parágrafo conclusivo conserve uma nota de melancolia. A árvore encanta e seduz: “Virou projeto de escola das crianças e casa do beija-flor. Micos, bem te vi e até os morcegos vinham visitar o ipê, que usava tudo como ensinamento para os quatro. Passaram a tomar café junto com ele (…)’.
Finalmente, por tudo isso, “Contos de Fuga” é um bom companheiro para essa quarentena que nunca termina. E, sobretudo, para depois dela, como inspiração e guia criativo para mover-se por um mundo que jamais voltará a ser o mesmo.
Rogério Faria Tavares