Inventário dos objetos de decorar e ferir é o livro de estreia de Bruna Gonçalves. O título nos leva para o limite tênue dos objetos e seus nomes. Não é uma coleção nem um arquivo, embora revele o ofício de quem guarda, reúne ou descarta. Etimologicamente, um inventário nos conta sobre uma descoberta. Mais que um registro de bens daquele que morre, seu inventário aponta para a relação das coisas que se inventa sobre aqueles que vivem: “eu mesma relato a herança e distribuo/os objetos para a posteridade” (“Leitura”).
A tesoura que serve para ferir e decorar, não por acaso, é o primeiro objeto inventariado. As duas partes do livro, “De decorar” e “De ferir”, são dois lados de um mesmo lado. A própria poeta nos lembra que “pensando bem: tudo tem/para ferir/alguma utilidade” (“Tudo tem”). O livro se faz em torno disto: domar o que fere e devolver o corte ao que decora: “não sentir/medo nem raiva dos objetos que ferem” (“Pergunto aos atiradores de facas”).
Bruna Gonçalves mostra inteligência no uso dos recursos poéticos: a diversidade dos ritmos, o despojamento da linguagem, os intertextos e as metalinguagens, a precisão dos enquadramentos, uma fina camada de ironia e beleza que a tudo recorta. Na poesia da autora, reconhecemos o influxo de suas leituras, em especial das poetas contemporâneas, mas fica evidente uma dicção muito particular e uma forma própria de retratar personagens, especialmente mulheres. Assim, somos apresentados a Janaína, Marlene, Lucinha, Andrômeda, e aprendemos com elas uma ética do olhar.
Este livro é também um inventário de sonhos, delírios fotografáveis. O sonho com o sonho do mamute em “Um dinossauro sonha com um meteoro” cria um poema que soa inédito, mas parece sempre ter existido. Em poemas como “Se você fosse um de seus alunos” e “Saberíamos cantar o hino da Hungria”, o real se torna múltiplo, tal como nos versos de “Iceberg” (“você brinca/que deve existir uma realidade paralela/para cada escolha feita: imagina/um duplo de você em cada palavra/desse poema em cada poema desse livro uma infinidade de outros”) ou na descoberta insólita de um livro seu (de outro) em “Tabacaria”.
Historiadora, professora, ex-funcionária de arquivo, estudiosa de fotografia, nascida no dia do Oscar, Bruna Gonçalves oferece em seu Inventário uma lição das coisas visíveis. É preciso entrar neste livro como um gato numa casa ou simplesmente lê-lo como se, de repente, descobríssemos que fomos nós próprios que o escrevemos, em alguma vida que ficou submersa.
Rafael Julião