Escrever é uma vastidão dormente: espaço desértico, areia contra a pele, secura na garganta, morte e abutres sob a cabeça. O poeta caminha nesse terreno e de seus olhos arregalados a paisagem é esgarçada em vida. Felipe Julius tem essa maneira de ver atravessada pelo que não se vê.
Foram talvez os anjos revoltados, está repleto da dissonância dos grandes livros, são acordes desencontrados, intervalos aumentados e diminutos se completando numa voz melódica, harmonioso. Falamos aqui da arte do contraponto Bach, da polifonia de Villa Lobos, do cruel Artaud, do absurdo de Beckett, das imagens derretidas de Piva.
A pergunta feita em nossas caras: preservar a tradição/é realmente mais importante/do que investir na singularidade? Creio que não, melhor ver Mallarmé pichado num muro, uma sinfonia tocada numa gaita de camelô e as praças sendo transformadas em hortas públicas.
Os marketplaces, a inconsciência admitida, o suco do capitalismo e a pachorra de nenhuma caridade a nos elucidar. Todos nós ignoramos em algum grau a realidade que nos permeia, mas este livro não é piedoso, é baque de fuzil, britadeira dentro dos ouvidos, mãos amarradas do faminto numa mesa farta. “Sejam bem-vindos”, se anuncia na entrada, mas só poderá comer quem perpassa os pratos vazios com a imaginação e encontra neles o banquete farto. Apesar do deboche, da vicissitude, terminar-se-á em exaltação.
Houve um debate muito intenso nos últimos anos sobre a ideia de que a poesia contemporânea, embora extremamente diversa, tinha como prevaleça certa sisudez, hermetismo e um tom de diário autocentrado. Até o defunto de Fernando Pessoa foi trazido de volta para corroborar com a tese e ainda puxaram do além, como séquito funesto, mais meia dúzias de escritores que, segundo o dito pelo maldito, sabiam desde épocas imemoriais ser muito mais difícil se arriscar nas artes das letras depois do poeta sebastianista.
Com o devido respeito a opinião alheia e as múltiplas experiências passíveis na existência, é compreensível que nem todo mundo entenda a magnitude do lirismo contido na imagem pagã de uma mamada abaixo da escada rolante do shopping, ambiente asséptico feito para ser revertido nas ruínas do que é a beleza.
Aqui, nesta obra, há materialidade em forma de anjos cosendo nas velhas nuvens, contradizendo o conceito econômico, executando o maior dos crimes: inverter os valores preconcebidos e, numa alquimia, tomar o conforto de assalto e produzir uma estética do desconforto para repousarmos.
Tiago Fabris Rendelli