Antes de ler este livro, convém observar o voo das aves. Convém ainda saber que, em média, a densidade dos ossos das aves é 1400 vezes maior que a do ar. Sei que há um paradoxo nessas recomendações, mas é disso mesmo que se trata. Para Guimarães Rosa, o paradoxo existe justamente para que possamos expressar aquilo para o qual não existem palavras, e erre amaral, leitor refinado de Rosa, sabe muito bem disso, desse terreno fecundo em que o paradoxo, ao quase se confundir com a metáfora, viceja a linguagem.
É o que se vê nos poemas que compõem foi o tédio quem forjou em mim ossos pneumáticos, escritos com a rara sensibilidade de quem sabe que o infinito e o nada existem, embora se construam com as minudências do dia a dia. Veja-se, por exemplo, o longo verso final de “como esmigalhar um tenro amor”, composto ao modo de um repertório de cruéis miudezas capazes de minar, no chão de fábrica do amor, suas promessas de plenitude: “divida-o em pequenas porções e mastigue-o com os dentes do ódio e engula-o com a garganta do tédio.”
Ora, a face mais premente do tédio é a sensação de que o tempo não passa, embora, para desespero dos que o descobrem, ele passe. Em “canção do amanhecer”, é o próprio tempo quem torna mais densa a experiência de cada dia: “meus amanheceres / são mais densos: / o tempo me obriga / a contá-los.”. Por vezes, essa experiência avassaladora do tempo é de tal magnitude que produz em nós uma espécie de ontologia das cinzas, uma constatação amarga de algo que foi e deixou de ser, sem sequer deixar memória, como o poeta nos anuncia no sintético “de fio a pavio”: “chega um momento em que as cinzas / são apenas cinzas, / e não a aquecida lembrança do fogo.”
Mas o poético responde. O que dorme dentro dos ossos das aves (pneumáticos, não?) é o pneuma, o sopro, o princípio a que os gregos atribuíam a própria existência da vida, como o verbo da tradição judaica. Aqui, a fala (imaginária?), o verbo rebelde que dá nome ao livro vem da voz de um pintassilgo aprisionado, que, no antológico “como engaiolar um passarinho cantador”, nos adverte: “não se espante, / no entanto, / se, por um breve momento, / percutir em seus tímpanos / o impossível canto de um bico fechado.”
Como os ossos das aves, também os poemas de erre amaral são densos e plenos de ar. Pneumáticos. E, no entanto, ou justamente por isso, voam e nos servem de antídoto contra o tédio em tempos em que, como o nosso, ele parece imperar.
Júlio Machado
poeta