Este é um livro digno de nota. Note-se, para começar, o título, que designa objetos artísticos doados às divindades como forma de agradecimento por uma graça alcançada ou pagamento de alguma promessa. Note-se a estrutura em quatro partes: “Fogo, Danação, Cinzas, Arrebatamento”; sugerindo uma trajetória de penas, morte e ressurreição. Note-se a poesia intimista, surgida de um mundo interior cultivado, urdindo uma poética da observação, conexão e sentido vazada em linguagem por vezes elíptica e lacunar, feita de digressões, frases entrecortadas. Note-se as referências e diálogos com outros textos e autores, e os versos muitas vezes flertando com a prosa. Note-se o humor, preciso e corrosivo, atento às ironias e hipocrisias da sociedade. Note-se como os textos transitam entre raízes familiares, leituras, sonhos, mas sobretudo a memória e o cotidiano.
É conhecida a afirmação de Ferreira Gullar de que a poesia surge do espanto. Neste sentido, os poemas deste livro parecem querer nos dizer que, se olhadas com atenção, até a mais rotineira das experiências é de fato espantosa. Desse modo, a realidade imediata se estabelece como ponto de partida para muitos dos poemas, num exercício meditativo (porém ativo) de presença e observação, como, entre outros, nos poemas “Aos urubus da avenida Omar O’grady”, “Despertador”, “O piolho de Cassandra” e “Depois de tudo”, onde o mundo exterior do rio e do cair da tarde (com suas árvores, pássaros e animais) se mistura com naturalidade às imagens e associações do mundo interior do sujeito lírico, e no qual o fluxo poético e lírico desse encontro é desfeito, de forma sintomática, pela chegada incontornável de outras presenças e subjetividades.
Note-se, portanto, que a poesia aqui emerge não só da observação, mas do atrito com o cotidiano, do embate entre a realidade objetiva (os fatos e coisas e seres externos) e a subjetiva (o mundo interior, os sentimentos, as associações e referências do sujeito lírico). Estabelecendo uma atenção relacional ao mundo que é também uma investigação do mundo por meio da linguagem, que funciona como um vínculo, um veículo, uma ponte, uma forma profundamente humana de conexão e contato com os seres e as coisas ao nosso redor. Note-se, assim, finalmente, que é preciso embarcar quando uma poeta digna de nota nos concede um passeio pelo mundo visto por seus olhos, cérebro e nervos. Maíra Dal’Maz
Márcio Simões