Daquilo de que Somos Feitos nos recorda um passado que ainda não esquecemos porque não apenas é muito recente, como na verdade sequer passou. Com ele, revivemos a experiência de sentir-se estranho no próprio país, de viver num ambiente em estado avançado de decomposição, que foi uma constante para muitos que sobreviveram ao Brasil na última meia década. Revivemos também o mal-estar de perceber o próprio distanciamento crítico frente ao ambiente como parte do problema, sintoma de uma fratura social profunda que faz com que quem se crê mais consciente dela não necessariamente seja, nem se apresente como, aliado natural para quem com ela mais sofre. Somos obrigados, assim, a confrontar as causas sociais e afetivas da decomposição, bem como o fato de que estas não desapareceram da noite por dia apenas porque personagens como o atirador Marcos ou o tio do narrador não estão, por ora, no poder.
Com sua dupla formação de filósofo e romancista, Ádamo da Veiga sabe tanto analisar quanto narrar os caminhos explosivos que sentimentos de humilhação, abjeção ou injustiça podem tomar. Sobretudo, ele sabe mostrar com clareza o quanto o mundo em que vivemos, com sua terrível maneira de combinar o imperativo da realização individual com condições cada vez menos favoráveis para cada vez mais gente, é uma grande máquina de produzir frustração (com o que efetivamente alcançamos), auto-recriminação (por ficarmos aquém do esperado) e ressentimento (diante de todos cujas vitórias, por menores que sejam, experimentamos como imerecidas, injustificadas, afrontas a nosso próprio esforço e sofrimento). Finalmente, ele nos faz ver como, ao invés de transsubstanciar-se em ímpeto igualitário por justiça e reconhecimento para todos, este coquetel de paixões tristes a menudo redunda em mais individualismo, solidariedade negativa, fantasias de vingança, vigilantismo e acting out.
Ninguém é herói em Daquilo de que Somos Feitos; todas as personagens carregam, de diferentes maneiras e com graus diversos de consciência, a sordidez daquilo que o mundo fez delas e daquilo que elas souberam fazer do que o mundo lhes fez. É nesse gesto de recusar o maniqueísmo e abraçar cada indivíduo em sua própria feiura que talvez possamos discernir algo de otimista e até quase utópico no livro: a possibilidade de, nesse desnudamento radical da vulnerabilidade compartilhada, no reconhecimento de que estamos todos sofrendo, encontrar um caminho para escapar à ação implacável dos mecanismos perversos que o romance expõe.
Rodrigo Guimarães Nunes