Este é o labirinto de Creta. Tomo de empréstimo os dois primeiros versos do poema de Jorge Luis Borges para falar de Coisa Nenhuma, primeiro livro de contos de Rodrigo Silveira. Ou, antes, para falar desse labirinto construído como armadilha e jogo no qual o leitor é emaranhado. E se se emaranha é porque também é fio, novelo, novela. Isso para dizer que, sob a pretensa forma da narrativa curta, é outra coisa que o Minotauro constrói. Ou, melhor dizendo, o autor. Corrigindo: a voz narrativa. Ou, antes, as múltiplas vozes que atravessam essas paredes, esses contos, esse organismo.
Há em Coisa Nenhuma uma proliferação sebaldiana de caminhos e sentidos e, talvez, por isso, hesito em definir este livro como um livro de contos pura e simplesmente. Porque, se por um lado me parece sê-lo, por outro extrapola os limites do gênero ao operar em uma lógica e (po)ética muito próprias, aquele fio de Ariadne que se estende em um caminho rizomático não apenas se apoderando de todos os espaços, mas também criando um espaço-outro, uma “terceira margem”. Como se cada narrativa fosse o eco da vizinha, e em um movimento de dobra e desdobra (um movimento desdobrável) vozes, paisagens, situações, percepções, personagens, peripécias, formassem um único corpo sonoro e vivo que, por sua vez, se permite também fragmentar.
Eis a beleza disso tudo.
Sob o pretexto do livro de contos, Coisa Nenhuma entrega a aventura de estar vivo, e estar vivo é o zumbido contínuo que atravessa os pavilhões do ouvido, são as fotografias em seu embate pela melhor versão da verdade, a memória e suas armadilhas. E, em assim sendo, é preciso dizer também que este é um livro sobre a linguagem, sobre a costura aparente e o avesso dela. Nesse sentido (mais um), “Menor significado” é exemplar. O conto é um artefato: um personagem dentro de uma caixa de música, dentro de um sonho, dentro de uma máquina que joga xadrez. Um artefato construído para a linguagem e seus mecanismos, suas falhas e êxitos, para deixar à mostra os tendões e nervos do texto e de sua construção: o narrador que escolhe os lances, que manipula as peças e leva o leitor para onde quer, que se mistura à plateia tão logo faça um novo ajuste de lente, de foco. Um manual de escrita no qual os músicos correm para ocupar seus lugares mal se abre a tampa da caixa de música, muito embora a bailarina não saia do seu eixo.
Poderia ao revés do que ensinam as regras para o bom texto qualificar aqui, com vários adjetivos, este Coisa Nenhuma, e cada um deles seria um chamariz, um letreiro luminoso na porta de um hotelzinho suspeito no meio do nada, o caleidoscópio formado pela luz que atravessa um copo de cerveja. Mas não farei isso. Ao contrário, direi apenas que a porta está aberta. Este é o labirinto de Creta cujo centro foi o Minotauro.
Micheliny Verunschk é escritora.