Alguém escreve. Escreve porque precisa, escreve porque escrever é mais que registrar, mais que elaborar, é tornar palpável a vida. Quando a vida cintila, onde mais existiria senão na letra? Essa velha sombra do corpo ausente sobre a superfície clara.
Alguém escreve, e essa escrita atravessa o desejo de ser mãe. Atravessa a frustração das perdas. Se engana quem não mergulha nos riscos que o texto percorre quando, vivendo a dor, está vivendo, ainda. E, como numa canção, num blues, vai entoando a história comum e silenciada de tantas de nós.
Afirmo que alguém escreve, lembrando que não importa quem, pois o texto está além daquele que escreve, mesmo se tratando de um texto muito pessoal, escrito por uma mulher. Sim, é um relato, é pessoal, mas antes trata-se de uma canção, um blues, que vai entoando a história comum e silenciada de tantas de nós. Alguém escreve a partir de si, e escreve como nós.
Trata-se de um encontro com a honestidade, encontro este que permite perceber que há sempre algo desconhecido de si mesmo no viver, algo que nem toda a intenção de verdade consegue desvelar. Esse mistério, como se paga para que ele exista? Com a pena, diria Duras.
Esse alguém experimenta a dor e o desejo de que o pulsar tenha constância, de que a vivência se prolongue, e isso não é o mesmo fazer viver que a medicina ocidental conhece. Não, não se trata de fazer caber a multiplicidade dos corpos em fórmulas genéricas, de fazer da vida uma receita rasa e confortável. Nem daquilo que o senso comum atribui à maternidade: um instinto, uma realização. Há uma pergunta essencial em jogo. Criar vidas, como é possível isso?
Se a vida estreia e foge, há um recado a ser ouvido? Se um útero falha, o corpo da mãe é um lugar de partida? Se um útero falha, é Deus quem falha? E, o texto pergunta: “para quem Deus reza?” São a ciência e a fé que se veem em crise diante desta escrita: “quando tudo floresce no aleatório”.
Alguém escreve, é certo. E essa escrita não precisa de rótulos, como nenhuma criança, nem mesmo aquelas que não nascem, precisa. A escrita, como as crianças, precisa de um nome. A essa, dá-se o nome próprio de Cristina Parga, que, ao ser colocado como assinatura, já não é mais a da mulher que viveu, mas do corpo que escreveu. E, quando há escrita, há sempre alguém que lê.
Que nasça e seja lida, pois. E será.
Alice Bicalho