_sobre este livro
Bastardo, segundo o dicionário Aurélio, é quem nasceu fora do matrimônio; degenerado da espécie a que pertence. Expulso para o exterior, o bastardo é um forasteiro, um andarilho. É também um fora da lei, um outsider, um sem-lugar. Desse modo, a bastardia sugere um desvio, fissura a possibilidade de algo novo, impensado. A bastardia sugere contaminações, hibridações, narrativas rizomáticas que não se fixam num centro, numa verdade. A bastardia sugere, por fim, uma traição, denuncia a ordem e os poderes estabelecidos, as significações dominantes, as forças que querem nos paralisar. É desse lugar mestiço, contaminado que parte Victor Prado, é esse lugar que lhe serve de passagem e solo para sua poesia.
Não será por acaso que o primeiro capítulo do livro se chama Voçoroca, é o poeta frinchando linhas de fuga, gastando os sistemas e as estruturas rígidas do mundo e da linguagem. Voçoroca é um corte vital que comunica interior e exterior, e permite que o dentro não adoeça em solilóquios egocêntricos e o fora seja um lugar aberto ao outro, aos encontros:
Vários pensamentos e
ideias
que borbulham numa panela
exposta aos quatro ventos
sustentada por uma
moldura
corroída pela vertigem
que essa vida
causa a todos que
se dirigem à descoberta
e se deixam abrir
para si mesmos
Uma porta aberta
entre o dentro e o fora
Porque não há experiência[poética] sem exposição, sem transposição de fronteiras e criação de espaços vazios que intensifica e diversifica a caminhada. Quem se sente pleno não pode ver nem experimentar o limite. Por isso, o bastardo, ser incompleto, móvel, é um experimentador. Nômade, sai sem destino, entregue às forças matéricas do caminho, os “ ventos em espirais”, o ”rio enxuto”, o “mudo arame”, “estrelas” e “cadeira bambas”. Passeio é o segundo capítulo do livro, esse “lugar de não-sei-onde”, passeio benjaminiano: tremulante, circunstancial, frágil, experimental:
todos viram à esquina
onde homens jorram-se
beleza liquida
liquidez de cegos
A liquidez do caminho impede a sedimentação de um centro, libera um fluxo desejante, ou seja, prefere os vazamentos da água à unidade firmada nas margens de um poder. Dessa maneira, o poeta produz um suplemento de potência, que alarga e desconforma sua visão, o Caleidoscópio, terceiro e último capítulo do livro:
Espaços se formam entre as
frases,
entre as palavras.
vácuos.
O desejo, conforme Deleuze, é revolucionário porque sempre quer mais conexões, o desejo é múltiplo e multiplicante, é, nesse sentido, caleidoscópico, um espaço móvel e movente, desterritorializante. Nenhuma instituição, nenhum sistema, nenhuma língua, nenhuma verdade se fundará neste lugar movediço. Por isso, ler Victor Prado não é conduzir sua escrita a um centro original e explicativo, ao contrário, Victor Prado a explode em pedaços para se lançar em um caminho de destino incerto. É um bastardo que vagueia pela linguagem voçorocando seus espaços para nos revelar um mundo multifacetado, fragmentado, dinâmico e colorido
Meu corpo foi além de mim
e dilatei o infinito;
Carla Carbatti