Uma mulher nos oferece um banquete, nos servindo um delicioso menu confiance.
“Sabe o que é um menu confiance? É quando você vai a um restaurante e não escolhe nada no cardápio, você deixa a critério do chef os pratos que vai provar. Você entrega nas mãos dele o destino da sua próxima refeição.”
Assim Lígia Fonseca disseca a si mesma com uma faca afiada, expõe suas vísceras, sangra a nossas vistas usando o conto O Barba-Azul, escrito por Charles Perrault em 1697, como bandeja onde será servida a sua carne.
O conto de Perrault já passou por inúmeras interpretações ensaísticas e psicanalíticas ao longo dos anos, especialmente a partir do século XX, quando suas leituras se multiplicaram, mas agora aqui, neste livro, Lígia traz uma nova perspectiva que nos identificamos imediatamente, não sem dor, não sem medo, não sem horror, mas urgente para nós mulheres, principalmente nesses tempos que nossas vozes estão sendo ouvidas. Ela nos mostra a violência que somos condicionadas a naturalizar, a loucura que nos é atribuída como forma de desvalidação. Quantos Barbas Azuis existiram e existem no mundo? Quantas mulheres são iludidas para se tornarem mortas psicológica e até fisicamente através do abuso e da violência que estes relacionamentos trazem?
Lígia está certa. Abrir portas misteriosas é muito mais do que “curiosidade feminina” ou “desobediência”, características depreciativas que tanto tentam nos enquadrar há séculos. Os Barbas Azuis de nossas vidas usam os quartos trancados dentro de si para nos anular, nos silenciar enquanto tentamos desvendá-los, entendê-los, amá-los. Eles se sentem no direito de abrir as portas que desejarem tanto quanto nossas pernas. Portas são criadas para esconder segredos e aqui encontraremos a chave certa para abrir as que irão nos libertar.
Ler, Barba Azul ou todo coração tem um bosque de Lígia traz a confiança de que estamos no caminho certo. Nada mais poderoso do que fazer de traumas uma obra, ou pelas páginas de um livro ou em cima de um palco, suportes que ela transita com igual talento e força. Difícil colocar em palavras o quanto é necessário este texto, uma refeição tão profunda como indigesta.
Fernanda Nobre