Quais são as maneiras de entrar no peito de um passarinho? Há várias maneiras de se percorrer um livro, um voo ou um mergulho. Um dos modos mais prazerosos de entrar neste caminho poético de Piera Schnaider é se colocar também na posição de coisas mínimas e flutuantes. Quem lê Ave, maré está diante de grãos de areia, da suspensão de partículas e da própria palavra. Quem acompanha o gesto destes 69 poemas se torna ave “no ventre do tempo” e, simultaneamente, se torna cúmplice deste lembrete: “reinventar o trajeto da sombra”.
Neste livro, Piera condensa a linguagem e a espalha pela página como forma de evocação de entidades poderosas: a palavra e o papel; o corpo e o entorno. Orikis e origamis justapostos. Concisão, leveza e observação da natureza estão na estrutura do livro que conta com três seções delicadamente nomeadas: “Praticar o vento”, “Descaminhos do corpo”, “Levitar palavras”. Gosto de pensar nessas divisões como um haicai que aninha os demais poemas, que nos saúdam, e como lições despretensiosas desse gênero japonês.
Aprendemos aqui a “sussurrar como folha/ o idioma da ventania” e a observar a comunhão entre fala, silêncio e modos de pronunciar imagens, ritmos e sons. Aprendemos também a expandir a forma: o haicai não apenas enquanto linhas fixas, mas como modo de praticar e convocar a existência. Em algumas práticas de vento, Piera ultrapassa os versos esperados para a forma japonesa, sem perder o estado de presença. Dispor poemas com mais versos ou sílabas poéticas sugere um grau de subversão: a métrica não aprisiona a ventania da palavra.
Aves, palavras e marés são vivas e indicam rotas para se praticar a convicção do transitório: seja na aproximação de maré, Maria, mère na prece que nomeia o livro, seja no poema espiralado que nos remete à ciclicidade.
Como um pássaro “sobre nossos ombros”, “a poesia” de Piera “flutua”. Levanta voo e se inclina em direção à maré. Entre o lapso do céu e do mar, a exaltação da natureza, da página em branco. É íntima — da água, do ar, do arrepio e do sopro — e intima o mundo a habitar folhas e flores na calçada, ciscos que passam abraçados ao vento ou a brisa que desliza no dorso da borboleta. Há um jogo de proporções presentes neste livro, não somente pela forma do haicai, mas porque o silêncio de quem recebeu um “olho de vento/ pra escalar a altura cintilante dos insetos” insiste na dimensão. Outro caminho para continuar neste livro é confiar na “palavra solta/ ponta de flecha”, isto é, esticar a pronúncia do ar.
Nathália Lima