“fazer passar/o relâmpago/pelo buraco da agulha”, essa é a missão à qual se propõe Aliedson Lima logo no início de Artaud visita Pasárgada: passar a claridade do assombro pela mínima fresta do banal, agudo como navalha nova, escamoteando a face, direta e cortante. Porém, recusando a forma: talhando a carne.
Claridade. O susto diante daquilo que estava ali o tempo inteiro e a gente nunca foi capaz de ver (talvez este seja afinal o trabalho do poeta). Com uma linguagem direta e os dois pés virados em raízes, o poeta sergipano espreita a beleza incauta e crua do cotidiano. Mas por quê?
“Porque antes do amor há a vida”, já disse uma vez Antonin Artaud — como traz na epígrafe da terceira parte do livro. Entre a vida, inocente e cruel (como “uma criança que/acende uma bomba/de São João na boca/de um sapo”) e o tal “amorremanso” (esse vislumbre da Bandeira de Pasárgada) é onde há poesia.
Ser poeta é aprender a amar o espanto (palavras do próprio Aliedson), é ser aquele que já vem voltando enquanto todos caminham em direção ao abismo. Pode parecer, a quem olha de fora, que os poetas de nossa geração se entregaram ao niilismo ou ao existencialismo como se não houvesse mais salvação em parte alguma. Mas isso que chamamos de “salvação” é um número sem fim de possibilidades absurdas, muitas vezes pequenas diante desta vida cada vez mais imediata, e a poesia é uma delas, à qual o poeta se agarrou para não cair na fundura abismal.
Esse é o mérito do presente livro: extrair das frestas da vida (navalha é lâmina que não cega) a salvação que ninguém mais viu.
“¿Quién le dio al pequeño dios el centro gris del abismo?”, questiona Spinetta (uma de suas maiores referências musicais) no álbum Artaud (Pescado Rabioso, 1973) na canção “Cementerio Club”; foi quando Aliedson quando escreveu: “[mutilei] do instante/aquele versofaísca que/poderia incendiar a alma/de qualquer desgraçado”, e este livro foi seu sacrifício e sua dádiva.
Christi Rochetô
poeta e escritor