Quando conheci Raquel Versieux, era 2006 num boteco de BH. Ela retornava de uma caminhada pelo Anel Rodoviário, fotografando calçados perdidos juntos da mureta de concreto que divide as faixas desta via expressa. Sentou-se à mesa sedenta, reproduzindo o som estridente das buzinas de carretas, contando do vento quente dos motores diesel que balançavam seu corpo enquanto fotografava. Essa teria sido sua primeira investida como artista visual. Em “algodoar, devolvir”, sua primeira publicação de poemas, reencontro em palavras sua sede por descrever um mundo observado fotograficamente, em descolamento, sugerindo o movimento entre doar e devolver, ou devolvir, como nos convida a inventar. Foi ela que me contou também que, na fotografia, a velocidade mais baixa para não tremer a imagem é o exato intervalo entre uma batida e outra do coração. Para isso, deve-se ouvir o coração. Mas não é só sobre isso que ela me conta quando diz “devolvir/meu coração”, anunciando aqui uma espécie de auto pacto: reconhecer-se ao mesmo tempo em que se devolve o mundo através daquilo que observa e reorganiza, apaixonadamente. Sonho, trauma, imagem, memória, erosão, ereção, desejo, algo de ácido sobre o trágico e um gotejamento inteligente que figura a partir do seu “léxico particular de paisagem”, grande nuvem condensada prestes a romper, ou que rompe, feito raio, serpenteando a costura entre os poemas, talvez um barbante de algodão tramado a muitas mãos. “Algodoar, devolvir” é um livro imagético, quiçá figurativo, simbólico e lírico. Composto de três partes, vemos a autora percorrer o lamacento da individualidade, edificado na fabulação de si, para lançar-se num campo mais vasto e comunal, de parentescos e paisagens. Visível, por exemplo, na forma particular com que tece o envolvimento de sua pesquisa e criação a partir dos eventos históricos associados ao “Caldeirão da Santa Cruz do Deserto” (1926-1938), comunidade autossuficiente de base rural e religiosa, localizada no Crato, região do Cariri Cearense, violentamente massacrada pelas forças militares do Estado. O livro “algodoar, devolvir” faz do verso a escrita do tempo presente: fragmentado, incompleto e aberto, solicitante da leitora, assim como da memória. Nesse mesmo tempo presente, em que a reciprocidade é ainda uma miragem, estariam as imagens nos indicando algo de comunitário? São muitos corações batendo, pode-se ouvir.
Vedete Frugal