_sobre este livro
Agáloco: planta que cega, num livro de poesia por imagens. Rasgos de vermelho e músculos no vidro afiado. Também, por outro lado, um modo de transvisceração da poesia alheia em própria, ou seja, desvestimento do poema até o tutano do osso e reforma da carne nova, em gesto de ritual xamânico de morte e renascimento circular: aqui, o novo está no velho, origem e desembocadura se misturam. É de contradições, afinal, que se faz esta estreia bonita de Yuri Amaury, mas com uma maturidade rara e um projeto bem amarrado como quase nunca se vê nos baús de achados e perdidos que costumam constituir um primeiro livro de poemas. Aqui, se a poética parece buscar uma secura e contenção ainda cabralinas em sua aparência primeira, é porque é somente nos pulsos vivos do corpo que sua paisagem se desdobra (“não/ é teu corpo, o teu corpo”). Assim, por baixo do comedimento da linguagem, sempre mesurada no gesto do olho e do verso, vai pouco a pouco se organizando um modelo espasmódico e violento (“– Dai graças a Deus, senhor./ Se do original pecado/ Viemos, nada é errado/ – E graças a Deus, senhor./ Oferece a outra face, e/ Na dos outros, mete a faca/ – Dai graças a Deus, senhor.”) que atravessa, ou mesmo vara, os impulsos metafísicos de certos momentos.
É certamente uma poesia do corpo como coisa que trava a todo instante, como máquina ainda informe, inacabada, e ao mesmo tempo já prestes a quebrar, seja diante do toque, seja diante de um deus ausentado que ainda assombra nos discursos do mundo contemporâneo numa contínua terra devastada. É pesado escrever e viver assim, mas é construindo o horror já dado no mundo, dando-lhe um corpo poroso, que ele pode, surgido, ser também recriado.
Guilherme Gontijo Flores