Amira Rose Medeiros tem dois amores: a medicina e a literatura. Transita entre eles e deixa marcas visíveis dessa imbricação. A ruivinha do sinal vermelho, seu primeiro livro de contos, é uma prova disso, seja na forma ou no conteúdo. Como numa aula de anatomia, secciona-o em três partes. Na primeira, o objeto de estudo é o tecido social. É a parte mais densa do livro, na qual Amira expõe as mazelas das desigualdades sociais de um corpo doente, a sociedade. Destaco quatro contos. “As mulheres coloridas do sinal”, cujo título é uma espécie de falsete, pois mal consegue esconder a dor e o sofrimento de uma diáspora. “Escolha o que quiser”, que descreve a difícil arte da alteridade e de como ela pode surgir de onde menos se espera, como mostra seu desfecho, um tapa com luva de pelica contra os pré-juízos. Mas nem tudo está perdido, a julgar pela lição dada no conto “O doador do corpo”, que, a par de ter a ficção da escritora invadida pelo conhecimento científico da médica, é um exemplo radical de desprendimento e solidariedade. Por fim, o conto que dá título ao livro, cujo núcleo dramático, não por acaso, se dá em um sinal de trânsito, talvez seja o que mais revela a profundidade do abismo entre as pessoas, como os dois lados de um pulmão que agoniza por falta de oxigênio, ainda que por trás disso, mesmo por uma frestinha do vidro fechado do carro, se vislumbre alento no olhar de uma ruivinha que acena com algumas moedas na mão, um simples gesto, mas suficiente para lembrar que ainda há um fio de esperança.
Na segunda parte, para arrefecer a dureza da anterior, vem o momento lúdico, leve e bem-humorado do livro, no qual destaca-se “Gatinho casual”, que, numa leitura de primeiro nível, fala das trocas recíprocas de um encontro entre um pequeno felino e um ser humano. Desse momento, há muito o que aprender, sobretudo com os animais, que, diferentemente dos humanos, oferecem carinho sem moeda de troca. Contudo, nas entrelinhas, a casualidade pode ser lida como a fugacidade nesses tempos de amores líquidos, e o felino não necessariamente tem quatro patas.
A terceira parte não é visceral e contundente como a primeira e nem humorada como a segunda. É nela que se encontram as narrativas mais introspectivas, quase sem ação. Tudo a sugerir, como indica o subtítulo, um mergulho nas regiões mais profundas da alma humana.
Como última palavra, uma recomendação: acene de volta pra ruivinha do sinal e leia, sem medo, antes que o sinal abra ou feche.
J.L. Rocha do Nascimento