Poesia, prosa, conto, romance? Enguia-Lobo, de Flavia Recabarren de Castro, parece desafiar os gêneros. Seu texto transita livre ao descrever situações, imagens e personagens. Dois personagens: uma inusitada Enguia-Lobo que habita as pás de um ventilador de teto fazendo companhia fiel à narradora no momento em que esta se recupera da perda sua cadela Guloseima. Temos aí o esboço de uma pequena trama centrada na relação que aos poucos vai se estabelecendo entre as duas. Mas o que interessa em Enguia-Lobo está menos no conteúdo de sua história e mais na forma como o texto de Flávia se desenvolve e nos envolve. Descrições de situações domésticas, e dos afazeres do dia a dia, ganham uma dimensão poética. Um exemplo: Uma camisa no chão. Tem os punhos apontados para a porta. Parece desesperada.
Mas eis então que a crônica das situações domésticas encontra o fantástico. As nadadeiras da Enguia-Lobo como asas de uma imaginação que voa. Uma enguia falante, leitora de Machado, bebedora de cerveja (do tipo escura), que curti discos de rock. E ela também tem seus dias de ressaca… A crônica fantásticas das situações comuns. O comum das situações fantásticas. Tem vezes que tudo se mistura. E a lógica da Enguia é a que faz mesmo mais sentido.
Os vinte e um capítulos que compõem Enguia-Lobo possuem como regra nunca ultrapassar o limite de uma página. Rigorosamente uma página. Às vezes bastam algumas poucas linhas, dando prova de um domínio de síntese da autora. Outro exemplo: Às cinco da manhã de uma quinta-feira eu disse “bom dia”. Ela respondeu com uma voz caricata e rouca “bom dia”. Eu vomitei. Apenas três linhas. Um capítulo, mas poderia ser um miniconto.
Já faz algum tempo quando li pela primeira vez os textos da Flavia. Era uma série de contos curtos misturados com poemas distribuídos em umas cinquenta páginas de um arquivo doc. Alguns dos contos vinham com títulos duplos, outros nem títulos tinham. Mas todos eram marcados por uma originalidade rara, dessas que ilumina e te leva para cima te tirando de qualquer buraco. O texto solto, espaçado nas páginas, uma polifonia de vozes, trocas rápidas de diálogos, festas, danças, relacionamentos turbulentos, os CDs das bandas de rock… Sim, a época era essa, os CD players alimentavam as festas e as cervejas ainda eram boas…. Até hoje guardo como um dos arquivos de texto mais preciosos do meu computador. Uma fonte segura de inspiração.
Como primeiro livro, Enguia-Lobo vai aumentar bastante o número de pessoas que terão a chance de conhecer o precioso trabalho da Flavia. Inspiração multiplicada. E isso é só o começo…
Sérgio Puccini