Graciliano sempre professou sua falta de imaginação. E a verdade desse testemunho se comprovou na obra: o sertanejo só pôde criar em torno das coisas vistas, vividas e sentidas. Tal circunstância, biográfica e estética, moldando um realismo extremo de pé no chão, provocará dois efeitos em sua literatura, um na forma, outro no conteúdo. Quanto ao conteúdo, a inventividade ficará circunscrita ao ambiente que corpo e alma dolorosamente experimentaram pela dura vida afora, de muitas provações, acompanhadas pelo olhar piedosamente irônico ao redor do que viu. Mas a matéria é insuficiente para a forma – e a falta de imaginação necessitará também dos modelos literários. Por isso, quando relata em Infância que o avô observava detalhamente as peneiras sertanejas para então construir as suas, de modo rústico, vê-se claramente projetada pelo menino essa imagem marcante, como modelo que espelha a figura do autor, já crescido, estudando os romances para descobrir, desmontando-os, como se fabricava um troço daqueles.
Daí a pertinência profundamente enraizada da proposta de Kalina Paiva quando procura relações temáticas e conceituais entre o romance brasileiro S. Bernardo, do século XX, e o romance de Emily Brontë, do século XIX, Wuthering Heights – título cuja feliz tradução para o português fixou-o para nós praticamente como um patrimônio consagrado: O Morro dos Ventos Uivantes. Assim, percebe-se que, ao construir, em chave de realismo crítico, seu Heathcliff-Paulo Honório, indo pela via da releitura e diagnóstico daquela fonte inspiradora, Graciliano desvendou tal contexto deixando-o explícito sob a perspectiva da conceptualização marxista. O resultado oferece à cultura brasileira a operação estética altamente refinada de uma obra-prima – que Kalina, munida de discernimento e acuidade, foi capaz de estender ao apaixonado romantismo da autora inglesa, demonstrando que, em tempos de capitalismo, o calor da luta de classes está sempre aceso.
A meninice vivaz de Kalina, mãe coragem e mulher de luta amorosamente farta, acolheu essa união com seu olhar lírico de sadia naturalidade. Fraterna à atmosfera de paixão das três irmãs inglesas, as Brontë febris de vida e imaginação, a generosa anfitriã potiguar também convidou para a festa seu conterrâneo alagoano, cabra arisco, silencioso, de olhos interrogativos – e entregou-lhe carinhosamente a dádiva de uma revelação: o verdadeiro título de seu romance é S. Bernardo dos Ventos Uivantes.
Marcos Falchero Falleiros