Caro(a) leitor(a),
Escorpião é uma longa carta. Nela, J. escreve a Lara anos depois de ter sido abandonado: “embora a gente tenha sido feliz e se amado muito, eu fui foi uma espécie de agonia para você. Tanto que você não aguentou e partiu, sem aviso nem nada. E não precisava. Eu sabia. Rói por dentro conviver com gente como eu.”
Quem é J.? Só posso te adiantar que ele é médico. Exímio cirurgião. E que, ao longo da vida, tornou-se não exatamente um homem pessimista, mas melancólico, sensível às frustrações, dificuldades, violências e abusos relatados por suas pacientes.
- não consegue esquecer, mesmo já tendo se passado tanto tempo. Será que essa carta vai ser lida? Por que escrevê-la, então?
Para Philippe Lejeune, a carta, por definição, é uma partilha. Ao se dirigir a Lara, sua interlocutora, ele também passa a se ouvir. Ao partilhar sua voz, J. rompe o silêncio e narra seus dias, procurando dar um sentido à vida, mesmo que ilusório; procurando justificativas diante das máscaras que inventou para si ou tentando entender como suas escolhas, conscientes ou não, como os traumas que o marcaram foram determinantes para suas ações e sua percepção de mundo.
Como expressar tudo isso? A linguagem da carta é também uma linguagem-corpo, em que as palavras vão sendo impressas, ocupando e marcando nossa pele, imprimindo sentidos. Um corpo que, ainda que fale de si, carrega um endereçamento, um tu — outro corpo, outra pele, outra letra. Há um monólogo que se quer diálogo — fissura e desejo —; uma voz que se quer polifônica —, tentando acertar ritmo e compasso.
Entre a frieza do corte preciso e a incerteza do destino, o personagem hesita, questiona-se, reflete. Rasga e sutura a memória impiedosamente, procurando talvez um elo perdido, a medida de todas as coisas, o momento em que há uma reviravolta e que um novo destino se desenha, ainda mais incerto, mais angustiante.
Tal como um escorpião — conhecido por viver intensamente suas emoções (ainda que sombrias) e por buscar significados em tudo o que faz —, J. destila seu próprio veneno, num processo de limpeza e reinvenção de si mesmo.
Pois bem, esta carta-orelha é o meu processo de interpretação do Escorpião: texto rico, profundo e instigante.
Te desejo uma ótima leitura!
Atenciosamente,
Claudia Chigres