Aqui há um poeta. E este seu livro, Relato inverídico da tua morte, é um acontecimento que me deixa exultante. A poesia há que conspirar em igual medida com a beleza e com o terrível, e, entre uma e outra coisa, a poética de Ivon Rabelo transita.
Poderia falar do rigor da construção formal ou da elegância e espanto que alimentam as imagens que engendra, como o “liso cetim da indeterminação”, do poema “Ma’at”, ou como os três irmãos que envelhecem e são tidos como canecas com e sem tampa, de “Nós, Abjetos”. Mas escolho falar deste livro como o desdobramento sensível de um olhar permanentemente criando/recriando o mundo, um olhar que, como a agulha perfurando o tecido, conduz a linha e, assim, dota de significados outros o novo mundo que vai surgindo. Esse olhar-agulha (aqui brinco com a justaposição, método caro ao poeta) não apenas reclama esse mundo, mas dele se apossa com propriedade.
E eis que temos um artefato poético continente da volatilidade da vida e dos afetos, da carne e do espírito desejantes e ainda do diálogo com o sagrado e com outros poetas, artistas e filósofos. Mundo arquitetado com o apuro da justa medida, que se transforma em outros como sói ser a algo vivo. Livro do Mundo arquitetado sobre um vazio que é paradoxalmente prenhe de possibilidades.
Assim, estão contidas aqui as seguintes dobras/vincos: “Terço”, poema que abre o livro à maneira de um prólogo, mas que pode ser lido como convite a uma contemplação do sagrado sem a ilusão de epifania; Mutação ou O Vazio Provocado, percurso construído em oposições, duplicidades não exatamente coincidentes, pluralidades trepidantes como um certo “eu/pássaro/leopardo/salamandra”; Tradição ou O Vazio Continuado, no qual a voz poética aponta certa genealogia, dialogando com nomes que vão de Malcolm de Chazal, escritor mauritano que encantou W. H. Auden por sua poesia simultaneamente aforismática e inventiva sobre seres e coisas, ao pensador da potência do erótico Georges Bataille; e, finalmente, Escrevência ou O Vazio Vislumbrado no qual grandes nomes da literatura e da arte são postos em diálogos que atravessam os limites do tempo, da morte e quaisquer outros: leia-se o belíssimo “De Bob Dylan para Zabé da Loca (antiode)”.
Finalmente, celebro porque há muito conheço a poesia de Ivon Rabelo, porque desses encontros raros deu-se que, há décadas, somos mais que amigos, interlocutores. E exulto porque, com esta publicação pela Urutau, o grande público terá a oportunidade de conhecer sua elegante e preciosa poesia.
Micheliny Verunschk é escritora.