Se o crime não compensa, por que a honestidade causa embaraço aos honestos? Excesso de violência nos meios de comunicação influencia o comportamento dos idosos? Faz sentido romper relações com parentes por causa de eleições presidenciais? Por que não existe replay fora das telas? Quem sente saudade do ex-presidente Gonzalo Rose de Gutenberg? Em qual partido Deus vota? O que passa pela cabeça de um hamster sequestrado? Quantos sentimentos possui um chatbot? Por que alguns amores não acabam nem depois que terminam?
Todas essas perguntas (e tantas outras, que ainda não me ocorreram) se oferecem ao leitor dos contos de O ponto de vista do hamster, mas pouca ou nenhuma atenção receberam do autor.
Depois de alguma resistência inicial, o Senhor Daniel Knight parece ter engolido o argumento de gente muito mais francesa e mais premiada do que ele: em uma terra onde cada cidadão fabrica os próprios fatos, em um período histórico no qual teoremas matemáticos dependem de crença e de boa-fé, escrever algo que não corresponda a uma verdade inabalável configura risco à segurança pública. Não se esqueça que, a partir da Revolução Cristiana, todo escritor tem os direitos autorais das múltiplas interpretações de seus leitores.
Sem imaginação que as filtre, realidades se engastalham umas nas outras. Qual delas defenderemos? A nossa, é claro. Dom Casmurro não pode resmungar sua dor de corno no mesmo mundo iniciado pelo Big Bang há bilhões de anos. Brás Cubas não pode escrever, direto do além-túmulo, no mesmo universo em que Moisés abriu o Mar Vermelho. Daí, concluímos que as principais falhas literárias de Machado de Assis foram não ter inventado o Big Bang e não ter escrito a Bíblia.
O Senhor Daniel Knight, conforme desenvolve seu projeto criativo, elaborado a partir de 2008, pretende continuar de onde o Bruxo do Cosme Velho parou, exatos cem anos antes. As histórias com agá minúsculo se exauriram; resta aos escritores dominar a com agá maiúsculo.
Se, em seus dois romances de estreia, nosso escritor antirrealista inventou uma metrópole multicultural chamada São Paulo, cortada pelo Trópico de Câncer, agora, neste livro de contos, começa a esboçar um país que abrangerá sua cidade garoenta. Aposto que se chamará Brasil.
Lucífero Passarini