A memória invade os versos de Liara Oliveira por meio de cheiros, sons, gostos e toques do que já não existe mais; uma ressaca dos afetos que se perderam pelo caminho. Há também a observação de tudo com um olhar de quem aprendeu a antecipar ausências, elas que são inevitáveis e acumulam-se, até que ultrapassam os limites do suportável. Mas, como qualquer ressaca, essa só é possível devido à intensidade do que a precede, ainda que por vezes o que a voz lírica receba sejam migalhas (“costurando um cobertor de retalhos/das coisas que você não me diz”). É que o desejo é tanto que transcende os próprios corpos, por isso eles estão sempre sendo destruídos e reconstruídos em sua obra, incapazes que são de comportar tamanha ânsia por conexão.
A rotina e o mormaço dos dias opacos de Brasília se repartem em prédios, engarrafamentos, praças, esquinas e ruas. São espaços que irrompem nos versos da autora como vestígios de uma cidade que já não é a mesma, agora que a voz lírica precisa aprender a vagar só. O concreto não oferece conforto, a não ser o último de todos, aquele ensaiado em diversos momentos ao longo do livro. Consequência de uma sociedade que não nos acolhe, que mantém os portões fechados para quem implora por uma abertura mínima.
É devido a essas ausências que a cidade sem as figuras amadas (no plural, pois o amor aqui extrapola os limites do uno, do binário, do cis) é um ambiente decadente. E essa decadência aparece impregnada em tudo: na derrocada financeira (“não tem nada na geladeira/e eu me deito com fome/penso em/arrumar um emprego”), no perigo da vida urbana (“naquela mesma esquina/onde vimos o homem que vendia cachorro-quente/tomar três tiros pelas costas”) e no perecimento do próprio corpo (“doem os pulmões/e a garganta reclama/tenho cuspido sangue”). Ao longo de todas essas problemáticas, a escritora insere registros cortantes do vazio deixado por entes queridos e da sua própria experiência com a hostilidade (“cuspiram em mim no banheiro feminino”).
A cidade é um ente vivo que nos mastiga e nos cospe, um movimento de expulsão semelhante aos constantes vômitos da voz lírica, que parece estar sempre em iminência de vertigem. De certa forma, o próprio livro parece surgir a partir da necessidade de regurgitação. E assim os versos adquirem formas e ritmos que entorpecem quem os lê. Ao fim da leitura, somos nós que ficamos de ressaca. Se a destruição pela poesia é uma honra para a escritora, ler seus versos entorpecentes é nosso privilégio.
Luciano Duarte