A capacidade que a arte, e em especial a literatura, tem de transmitir sensivelmente a experiência do mundo não está posta nem na mimese formal dos objetos reais através dos quais se constituem, nem na verossimilhança produzida pelas ações das suas personagens. Reside, entretanto, na capacidade do artista de apresentar ao leitor uma certa dinâmica do real traduzida, com efeito, através de uma síntese de opostos, seja no plano visual, intelectivo ou sonoro do construto artístico. Essa unidade de mudança e duração (Wechsel-Dauer, como a nomeou Goethe) é um processo enantiomórfico através do qual se encerra a grande contradição desse real, a “coisa em si” tão obsessivamente perseguida pela filosofia ocidental, que, ironicamente, pode ser capturada apenas em seu estado de devir, esteja ele expresso no “fogo-calmo” do rio Neckar — como notou Hölderlin durante sua viagem a Heidelberg — ou mesmo na “pressa que se demora” das cascatas suíças em Schaffhausen, no rio Reno — conforme Goethe. Em outras palavras, a Alma da Natureza escapa, por sua própria índole transitiva, aos olhos dos homens já habituados à rotina dos acontecimentos, e, sobretudo, às categorizações próprias do uso utilitário da linguagem, isto é, da esterilização desse vir a ser provocada pela produção de mais e mais conceitos, o que se converte, fatalmente, numa cisão (na modernidade mais tardia) entre o corpo e o espírito. Na contramão dessas tendências objetificantes de um realismo extrínseco, Numa só onda o mar inteiro, de Caio Augusto Leite, percorre, mais uma vez, o caminho do corpo, através de temas que remetem inequivocamente ao desvelamento dessa dinâmica do real por meio de imagens simples, sensíveis e cristalinas, que, no entanto, pejadas também de sombras e lugares vazios, oportunizam o contraditório que pode levar a essa tão necessária desautomatização do olhar para o mundo, para o outro, e, dialeticamente, para si mesmo, deslocamento, esse, que só a literatura realmente atenta ao páthos da natureza humana pode produzir.
Rafael Tahan, poeta e mestre em Literatura Brasileira pela FFLCH-USP.