Lagar de Fala. Lagar ao invés de lugar.
Eu vejo lugar de fala como equívoco. Quem fala pelos outros sem autorização expressa está necessariamente supondo. Júlio, com seu talento paronomástico, escapa com ironia para Lagar, onde os pés descalços do poeta maceram as palavras, talvez na dança do kizomba angolano, escorrendo delas o sumo infame, o mosto sanguíneo do racismo.
No início de Lagar, uma incursão pela história e pelos versos de Fernando Pessoa – “Tudo vale a pena/Se a alma não é [pequena]” – onde cada palavra aparece recheada com paronomásias, aliterações e sinonímias. Já “Gramática Gerativa da ocupação do outro” evoca a teoria de Chomsky – a universalidade genômica da língua. Usamos a linguagem como os pássaros usam as plumagens. Exibimos a fala. O pavão abre a bela cauda multicolorida.
“Cerberus poem” é uma triunfante celebração das paronomásias. As cabeças trifrontes das palavras surpreendem e criam sons e formas imprevistas. Sacred Scared, uma simples troca de posição da consoante ‘c’ virou a primeira do avesso. Assustou-se o sagrado? Corre um arrepio religioso no texto poético.
“As meias do pai” é um mergulho de Júlio Machado em poema que escrevi sobre meu pai (“As meias furadas”). Achei que estava sozinho nas águas geladas, mas lendo o de Júlio percebi as borbulhas de alguém que conseguira mergulhar solidariamente comigo.
É encantador “O moleiro e o esmoler”. Ao modo das parábolas, gostoso e belo de ler, poema em que se conversa até com o caminho e a pedra, enquanto a vida nos mói a todos.
Dos melhores livros de poesia que li nos últimos anos. Alma alada, só posso desejar que voe logo, alto, rápido, e vá encantar muitos outros leitores.
Gilberto Nable