Há alguns anos, quando conheci Alexandra Lopes Da Cunha na sua cidade de Porto Alegre, percebi, em nossa primeira conversa, algo muito evidente, mas que eu, carioca adotivo recém-hipnotizado pela cidade maravilhosa, não compreendi então: que a matriz literária brasileira é muito rica e não se resume às superpotentes centrífugas culturais do Rio e de São Paulo, tão centradas nelas mesmas, tampouco às riquíssimas tradições caipiras, sertanejas, afrodescendentes e indígenas do interior, da Bahia e do Nordeste e da imensa bacia amazônica, mas que também incluía a herança centro europeia, germánica, italiana e portuguesa de segunda geração, tão palpável no sul do Brasil que ela tão bem conhece, além da relação íntima, geográfica, intelectual com a riquíssima literatura em espanhol dos países do cone Sul.
O que não sabia então, e que fui entendendo e admirando ao longo dos anos, é que seu próprio trabalho é um magnífico exemplo dessa diversidade, dessa abertura e dessa vitalidade. Os soberbos relatos transitórios deste livro (que não por acaso tem o subtítulo de Cadernos de viagens) são uma nova prova. Há neles ecos do famoso mal-estar dos centro-europeus e de Kafka (e também da sua ternura e infinita compreensão do humano, esquecidas com frequência), está a versatilidade e o puro prazer narrativo dos grandes contistas uruguaios e argentinos, de Hebe Uhart a Felisberto ou Cortázar.
E, caso infrequente, seu trabalho com a língua portuguesa continua uma tarefa empreendida em livros anteriores, que consiste em refletir e reconstruir vínculos culturais e afetivos entre Portugal e Brasil, como é o caso de duas obras ainda inéditas: sua novelização da figura de Florbela Espanca (Os ossos de Florbela) e seu relato de um amor luso-brasileiro no romance Entre nós, oceano.
Assim, há nestes contos menções diretas e ecos das fábulas condensadas e meditativas de Pessoa; há uma lúcida opção pelo romantismo de Castelo Branco; há a irrenunciável e higiênica ironia, além da clareza incisiva que nos remetem a Eça e a Sá-Carneiro e a grande Agustina.
Alexandra vive agora, precisamente, neste norte de Portugal, que foi o território arquetípico de Bessa-Luís, cuja paisagem e o clima (o real e o moral) envolvem-na diariamente. Parece-me possível já senti-los presentes nas narrativas deste livro. Cariocas e paulistas se apressam (demasiado, creio) em afirmar que Portugal está muito longe e se vê diminuto de lá. Pelos olhos e pela voz de Alexandra, no entanto, Portugal recobra novo relevo e complexidade. A autora coloca-se como interlocutora e possibilita um diálogo frutífero e prazeroso entre literaturas e modos de entender, de construir e de renovar uma mesma língua.
Há um adjetivo que agora (atenção, isso já ocorreu em princípios dos anos trinta) começa a soar suspeito e condenável, apesar de resumir e condensar muitas das virtudes da melhor literatura: cosmopolita. Estes contos e esta voz o são no seu melhor sentido: aquele que entende que a própria identidade somente pode nascer e construir-se a partir da atenção, da compreensão e do interesse pelas infinitas identidades presentes neste mundo, vasto mundo, a bordo do qual viajamos.
Javier Montes