A poesia de Jéssica Martins Araujo não poderia ter sido reunida sob um título melhor. Todos os poemas deste livro, do primeiro ao último, expressam, alguns mais e outros menos, a ideia de que viver é um desconforto, o que lembra, mais pela formatação do título do que pelo conteúdo e forma, o universo rosiano em que “viver é perigoso”, o que pode nos levar a pensar que, se é desconforto, é, também, perigoso e vice-versa.
Nos poemas aqui reunidos, tal desconforto assume a representação dos conflitos do eu-lírico e que se referem, por exemplo, aos relacionamentos sociais e amorosos e, supostamente, suas perdas, à vulnerabilidade resultante de circunstâncias de depressão e de ansiedade, à investida no artifício do metapoema, como formas de amparo ou salvaguarda de um desamparo, que, num sentido freudiano, é condição fundamental da existência humana. Tudo é desconforto na poesia de Jéssica, até quando se tem um eu-lírico que ri, como em “Poema da intimidação”.
Os títulos que agrupam os poemas em seções são portas de entrada para a leitora e o leitor acessarem um universo poético que atravessa e/ou representa certos condicionamentos sociais, culturais e existenciais bastante característicos de um modus vivendi moderno com ênfase a doenças que acometem o corpo e a alma da mulher e do homem desse mundo em que vivemos. Não raro encontramos menção ao estômago, intestinos, à digestão, de um ponto de vista mais amplo, numa conceituação da vida humana como algo (in)digerível.
A voz poética neste livro é, predominantemente, feminina e, em decorrência disso, seus temas centrais atravessam pautas reivindicadas política e socialmente, como a liberdade e o empoderamento, além de aspectos da intimidade, relacionados a sentimentos amorosos, perdas, vazios, solidão e, portanto, o desamparo de que tratei acima.
Certos aspectos da dimensão humana, apresentados nos versos de Jéssica, remetem-nos, também, ao místico e ao transcendental. Por meio de um vocabulário comum à(ao) falante da língua portuguesa, o que torna sua poesia acessível, deleitável e visceral, a poeta nos convoca, nessa sua estreia na literatura, à apreciação de um mundo lírico, em que somos recepcionadas(os) com a seguinte provocação: “Minha língua, antes fria e perigosa, é um tecido esponjoso e quente”.
Analice Pereira
Professora de Literatura do Instituto Federal da Paraíba
Julho de 2024