Às vezes a ferida está tão exposta que é preciso embrulhá-la num papelzinho, mesmo que este seja parco, precário. Como se desse esforço dependesse a possibilidade de preservar qualquer coisa de vida ante à emergência da morte, prologando a inevitável putrefação da carne, dos dias, da rotina, dos sentidos, do vocabulário. Um papelzinho que é também uma segunda pele; uma ferida que se faz tão íntima, que é também órgão, entranha.
Parece ser com esse gesto que Michelle Pastorini, essa poeta enfermeira de palavras, oferece ao mundo o seu primeiro livro de poemas, Tecido de papel para envolver entranhas. No lugar do bisturi, a caneta. No lugar do manual de anatomia, o dicionário. No lugar da aprendizagem técnica, a alfabetização. É com esses instrumentos que Michelle constrói seu tecido, essa frágil pele de papel na qual escreve, rasura, risca e reescreve, resistindo viva com a enlouquecida gramática das perdas e sem se eximir de reencontrar o amor diante do luto.
Os versos deste livro testemunham sua condição de sobrevivente. Como se, ante à perda de um núcleo organizador de sentido, precisasse reaprender o mundo por conta própria, dar nome ao inominável, ao silêncio de cada coisa, às texturas, às cores. E com quantas cores Michelle nos envolve em seus poemas. Descritora minuciosa de tons, é como se apostasse na passagem de um matiz policrômico à recuperação de um timbre de voz, um ritmo, algum som gutural apto a lhe dizer, a lhe narrar, a lhe reinventar.
O adoecimento e a morte, mesmo que reservados ao impossível, ao serem contornados e coroados de cores, deixam pestanejar alguma cintilância, alguma luminosidade que permite tocar o desejo, aqui retraduzido em escrita. É, portanto, uma aposta de vida a que faz Michelle, a de contar aos seus agora leitores o quanto a experiência de vazio se tece com alguma nascente invisível de claridade.
Respeitemos seus ritos. Caminhemos cautelosos nos enigmas que ela enuncia. Duvidemos do léxico cotidiano. Confiemos na prática de uma poeta que reconhece que amar é saber abandonar o texto. Ao fim, Michelle Pastorini, que nos brinda com este imenso livro, nos promete uma canção.
Marcela Maria Azevedo