Em um poema dedicado ao teatro (a arte da ação) e ao deus do teatro (Dioniso), Anne Carson afirma que os começos têm sua própria cor e tonalidade, e que são frescos e orvalhados, como uma uva. Uma uva é fresca e orvalhada como um corpo, quando ele age ou atua. Este livro de Paloma Arantes que você tem em mãos tem o sabor de uma uva. Ele poderia se chamar Muito prazer, como aquele primeiro livro de Chacal. Mas chama-se Sobremesa. Porque está cheio de doces e dentes e fomes e gulas. Ou seja, ele está cheio de ações.
A que gênero então Sobremesa pertence? Trata-se de um livro de poemas? Mais do que isso, nele há transas, ginásticas, dramas e esportes. Mas é como se não importasse realmente a finalidade desses jogos do corpo. No poema “handebol”, Paloma escreve que “em uma quadra 40 por 20/as regras em linhas pintadas no chão/dizem muito o que podem nossos corpos/e nossas mãos//mas se jogamos no mesmo time/o placar pouco importa”.
O que importa, de fato, é que dois corpos, quando se encontram, se confundem — Sobremesa é atravessado pelas formas da confusão. A confusão pode ser qualquer coisa como um mal-entendido, uma brincadeira ou uma mistura. Tudo isso você encontrará aqui. Um mal-entendido entre vizinhos ou ex-amantes, uma brincadeira infantil ou das palavras, uma mistura de corpos ou de sentidos. E, nesse ínterim, os corpos se ferem, e a poeta reconhece: “erramos a mão também/perdemos tudo”. Mas um corpo é um corpo: “ainda há fôlego”.
E Sobremesa está cheio de fôlego, como também está cheio de prazer. Nisso, as palavras de Paloma se aproximam de artistas da maior importância de nosso tempo. Ledusha, e seu erotismo melancólico; Ana Martins Marques, e o eros das coisas; Eleonora Fabião, e as ações que não têm por quê.
Paloma é generosa, ela quer dar prazer para você (sim, você). Afinal, com quem a poeta fala quando afirma que “se tiro essa língua da boca/posso, por exemplo, dizer/minha língua/e colocar na sua/o sentido da palavra prazer”? Os começos são sempre prazerosos — e Dioniso, o deus das ações, é deus dos começos. Onde Paloma começa? As últimas linhas deste livro o dizem: “a primeira palavra/sempre foi a palavra/desejo”.
Rafael Zacca