“A poesia/é uma caixa/cheia de pregos/enferrujados/protegida pela pele/de um tomate”, definem os versos finais de “Oficina”, poema de abertura desta sexta coletânea de Alexandre Pilati. A imagem da poesia como algo cortante e perigoso, protegido por uma membrana orgânica, perecível e fragilíssima, parece inverter o sentido da imagem que dá título ao livro, extraída do poema “Colheita”, de Louise Glück, que Pilati utiliza como epígrafe. Nele, a poeta estadunidense fala da última colheita de outono, das frutas e vegetais já danificados pelo frio. Os tomates parecem “cérebros humanos cobertos por linóleo vermelho”. Aqui, o interior do objeto, tomate ou cérebro, é frágil e aparece protegido por material resistente, impermeável e industrial. Mas o linóleo vermelho não impede a ação do tempo: o tomate apodrece, assim como o prego enferruja. Assim, apesar das suas diferenças, as duas matérias movimentam-se, isto é, mudam de forma, transformam-se. Embora em diferentes velocidades, tanto o ferro como o tomate decaem e perecem. A atividade cerebral também cessa, eventualmente. Como lemos em “Rejuvenesça”, “Certas coisas — a poesia, o órgão do sexo,/ os instintos e alguns lugares/onde de repente estamos/ou em que sempre estivemos—/encontram a ruína devagar.//E, com sorte, feito a juventude,/desaparecem sem tragédia”. Logo, fincando pé no campo do possível (“Ó, alma, não aspira à vida imortal, mas esgota o campo do possível”, apela o dístico de Píndaro), o poeta fala da matéria submetida ao devir aristotélico, esse movimento incessante e interminável da potência ao ato, que se realiza em tudo: nas coisas, naturais ou artificiais, e nas ações humanas. Mas se, para o filósofo grego, a matéria se move com uma finalidade — a de encontrar seu lugar natural, atingindo a perfeição do mundo supralunar —, para Pilati o mundo é um só: sensível, imanente, cujos movimentos nem sempre são previsíveis ou necessários. Pois é de fragilidade, instabilidade e contingência que Alexandre Pilati extrai a força de seus poemas e segue adiante: para além dos movimentos da matéria, há os movimentos da história, que determinam a própria physis. Mas, atenção: não se trata da história como totalidade estrutural, unidade sistemática, mas da história heterogênea, descontínua, composta de fenômenos particulares e transitórios. É no interior dessa “história natural” (para falar com Adorno), ou natureza histórica, que Pilati busca dizer o ser das coisas — e por isso sua poesia tem também uma aspiração ontológica. Assim, é sintomático que “Os anjos com os quais mais simpatizamos são aqueles de quarto ou quinto escalão, feitos de gesso” (“Esculturas infinitas”); no poeta que lida com a matéria rebaixada, “nada há que seja feito de ar” (“Entulho”). O eu lírico de “Escapatória”, tal como o inseto de Kafka, parece ter a “consciência agudíssima/de que só se pode profetizar/o presente e ele é um labirinto/cheio de gigantes”, em que “escapatória” é mais palavra que realidade. A percepção da transformação das coisas caminha de mãos dadas com a consciência aguda do processo social junto ao qual a poesia também se move. As coisas do mundo sublunar não estão sujeitas apenas às leis do hilemorfismo (às interações entre matéria e forma), mas também aos movimentos da história, que engendram classe, trabalho, produção (“Preso à minha classe e a algumas roupas (…)”, diz Drummond, que é mestre e guia da poesia de Pilati). Não por acaso, é em outro poema metalínguístico (“Literatura”) que Pilati retoma o título do livro: “Essa cálida luz/de prece e cadafalso/sob linóleo vermelho”. O que o linóleo protege, aqui, é a própria literatura, luz provisória e perene, ameaçada e resistente, solitária e empenhada.
Chantal Castelli